A seguir, mais uma extraordinária contribuição para a Conferência Caio Prado Júnior, que discute os novos rumos da esquerda democrática e seus projetos para o Brasil. Demétrio Magnoli, sociólogo, jornalista e doutor em geografia humana pela USP, concedeu a seguinte entrevista exclusiva ao Blog do PPS/SP:
1) Na sua opinião, o que é ser de esquerda hoje no Brasil?
Ser de esquerda, em qualquer país, significa pender para o princípio da igualdade, quando ele entra em confronto com o princípio da liberdade.
A esquerda fundamentalista suprime a liberdade, em nome da igualdade. A esquerda democrática preza a liberdade e aprendeu que a democracia não foi inventada pela burguesia, mas pelas ondas de choque geradas pelo movimento operário no Estado liberal.
Essa esquerda continua a defender uma maior igualdade, o que geralmente implica regular o mercado. No Brasil, a regulação do mercado exige, antes de tudo, a separação entre as esferas pública e privada, o combate ao patrimonialismo, a desprivatização do Estado. Não é um programa banal.
2) Para o eleitorado, ainda existe uma diferença clara entre esquerda, centro e direita?
Cada vez menos. A identificação entre o PT e a esquerda, nos "anos heróicos" do PT, foi bastante profunda. No poder, o PT converteu-se num "partido da ordem", no pior sentido da expressão. O que ele conserva não é, essencialmente, a ordem democrática conquistada com o fim do regime militar, mas a ordem patrimonial da tradição profunda brasileira.
A confusão política produzida pela conversão do PT contamina o cenário. Ela abre caminho para um reforço das modalidades mais perigosas de conservadorismo e, simultaneamente, para o renascimento do salvacionismo político.
3) Por que os partidos políticos vivem hoje uma crise de identidade?
A crise de identidade do PT é um traço genético: o PT declarou-se socialista desde o início, proclamou sua contrariedade com o "socialismo real" e anunciou a intenção de inventar um novo socialismo. Nunca soube fazer isso e, quando chegou ao poder, reduziu seu projeto à manutenção do próprio poder - e ao usufruto de suas benesses.
O PSDB entrou em crise mais tarde, quando o segundo mandato de FHC foi engolfado e paralisado pelas crises financeiras internacionais. Nesse momento, quando seria necessário elaborar um projeto nacional, o PSDB fracassou - e se debate até hoje com as repercussões desse fracasso.
Já o PFL (o atual DEM) jamais foi verdadeiramente liberal. Nasceu como guarda-chuva de oligarquias regionais e, apesar dos esforços de Jorge Bornhausen, não conseguiu se modernizar. Ao renunciar a seu nome, desiste de uma meta nítida mas não a substitui por coisa alguma.
4) Qual a importância da Conferência Caio Prado Júnior, realizada para discutir a esquerda democrática e um projeto para o Brasil?
Penso que é a chance de ajustar as contas, em definitivo, com a tradição do stalinismo. Talvez seja a oportunidade de capturar as bandeiras nunca realizadas do republicanismo radical - e assim reinventar a esquerda no Brasil. Há demanda por um partido e um programa desse tipo. No fim, quem sabe o PPS venha a ser o partido que o PSDB nunca conseguiu ser?
5) O PT, considerado o maior partido da esquerda no Brasil, construiu uma ampla aliança partidária para exercer o poder e se viu envolvido em denúncias de corrupção e escândalos. Estes fatos podem trazer alguma consequência para os partidos de esquerda hoje e no futuro?
A trajetória do PT golpeou em profundidade a noção de mudança, que é o núcleo político da esquerda. Essa idéia não será restaurada em pouco tempo. Mas terá que ser restaurada, de um modo ou de outro.
6) As políticas assistenciais do governo Lula, que tem o Bolsa-Família como carro-chefe, são eficazes no combate à pobreza e à miséria? Essas medidas podem ser consideradas políticas de esquerda? Por que?
O vasto programa assistencialista do PT faz parte de uma política conservadora, baseada na aliança prioritária com o setor financeiro e na renúncia à luta pela universalização efetiva dos direitos.
A crítica ao assistencialismo está na ordem do dia. Pode não produzir maiorias eleitorais no curto prazo, mas é crucial para a reorganização de um pólo mudancista no país.
7) A reforma política que se discute no Congresso propõe mudanças pontuais, como maior rigor na fidelidade partidária, introdução de listas partidárias fechadas nas eleições, financiamento público de campanha, cláusula de barreira etc., além de colocar em debate temas como o voto distrital e o parlamentarismo. Qual a sua opinião sobre a reforma?
A representação, no Brasil, foi moldada de acordo com os interesses do Executivo e da elite política. Uma reforma política digna do nome teria que pensar a representação do ponto de vista dos cidadãos.
Listas partidárias fechadas é ampliar o fosso entre as elites políticas e os cidadãos. Fidelidade partidária e voto distrital reduzem esse fosso, ampliando o controle do eleitor sobre seu representante.
Poucos discutem as coligações. Mas, no sistema atual, os eleitores elegem inevitavelmente alguém em quem não votaram. Voto distrital misto e proibição absoluta de coligações em eleições parlamentares são medidas democráticas elementares. Sem elas nenhuma reforma interessará aos cidadãos.