Dando continuidade às contribuições para a Conferência Caio Prado Júnior, que pretende debater os rumos da esquerda democrática no Brasil, publicamos hoje entrevista exclusiva do ex-presidente do PT e ex-deputado José Dirceu ao Blog do PPS/SP.
José Dirceu de Oliveira e Silva é advogado, graduado pela PUC de São Paulo. Líder do movimento estudantil, foi preso e cassado pela ditadura militar em 1968. Participou ativamente da fundação do PT, em 1980, do movimento pela anistia e também da coordenação da campanha pelas eleições diretas para presidente (1984).
Em São Paulo, foi eleito deputado estadual, em 1986, e deputado federal, em 1990, 1998 e 2002, quando obteve 556.563 votos — o segundo mais votado do país.
Na Câmara dos Deputados, assinou, com Eduardo Suplicy, requerimento propondo a "CPI do PC", que levou ao impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Também participou da formulação dos projetos de reforma do Judiciário, da Segurança Pública e do sistema político.
Em 1994, foi candidato ao governo paulista e recebeu 2.085.190 votos. Em 1995, assumiu a presidência do PT, tendo ocupado o cargo até 2002, quando se licenciou. Integrante da coordenação das campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência em 1989, 1994 e 1998, foi o coordenador-geral em 2002. Com a vitória de Lula em 2002, assumiu a função de coordenador político da equipe de transição.
Em janeiro de 2003, Dirceu foi nomeado ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República, permanecendo no cargo até junho de 2005, quando retornou à Câmara para fazer a defesa de seu mandato, cassado em dezembro do mesmo ano.
Em 2006, foi citado em denúncia da Procuradoria Geral da República, da qual está se defendendo no Supremo Tribunal Federal.
José Dirceu se diz, desde 2002, "vítima de acusações infundadas". Lembra ainda que foi "sistematicamente inocentado, na CPI da Loterj, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, e na CPI dos Bingos, no Senado Federal". Além disso, afirma que o Tribunal de Contas da União declarou legais contratos mencionados em denúncias que citavam seu nome.
Acompanhe a entrevista de José Dirceu ao Blog do PPS/SP:
Na sua opinião, José Dirceu, o que é ser de esquerda hoje no Brasil?
Em primeiro lugar, ser de esquerda no Brasil é ser contra a direita. É ser contra o conservadorismo e a favor de um Estado que promova o desenvolvimento, não de um Estado mínimo. É ser a favor do projeto de desenvolvimento nacional e da cidadania no Brasil. Ser de esquerda é ser a favor da justiça social antes de mais nada. Toda a política de desenvolvimento e crescimento econômico necessita ter como objetivo, diminuir a desigualdade e a pobreza no Brasil.
Ser de esquerda é alargar e aprofundar a democracia e lutar pela igualdade, contra a discriminação e o preconceito, particularmente, contra o racismo e todo o tipo de discriminação contra os homossexuais e o portador de deficiência. Ser de esquerda é lutar pela paz no mundo, pela preservação do meio ambiente. É estar ao lado da juventude brasileira na sua luta por dignidade. Ser de esquerda é antes de mais nada, ser a favor da igualdade, da justiça e da liberdade.
Para o eleitorado, ainda existe uma diferença clara entre esquerda, centro e direita?
Sim, as pesquisas e as eleições mostram isso. Evidentemente, há um espectro partidário e de voto no Brasil que vai da extrema-esquerda até a direita, não diria extrema direita porque nós não temos isso no Brasil.
Você tem do PSOL ao PFL, e as posições correspondem a isso. Se você analisar as posições do PT, do PDT, do PSB e do PPS e do PV, você verá que elas têm uma base comum, mas depois se diferenciam num espectro, onde alguns partidos tendem mais a uma aliança com a direita e outros mais ao centro. Inclusive, por não haver uma maioria no país, e diante da necessidade de fazer estas alianças como é o caso do PT.
Dizer que não existe mais esquerda e nem direita no Brasil, é negar o que houve na última eleição, que no segundo turno, o eleitorado optou claramente por Lula e por um projeto político diferenciado daquilo que na memória do eleitorado, representou o governo Fernando Henrique Cardoso: as privatizações, a abertura econômica do país, a idéia do Estado mínimo.
O eleitorado distingue claramente os partidos conforme suas idéias e programas; eles representam setores e classes sociais brasileiras. Eles podem não ter o caráter consolidado de partido político, porque a legislação brasileira e o sistema político eleitoral brasileiro não ajudam, não há fidelidade, não há financiamento público, e o mais grave, o voto é uninominal.
Nós temos que manter o voto proporcional, mas temos que caminhar para o financiamento, fidelidade e voto em lista, até para os partidos ganharem um perfil político programático para o eleitorado.
Por que os partidos políticos vivem hoje uma crise de identidade?
Alguns partidos vivem. De uma maneira geral, os partidos sempre estão em crise porque precisam se adaptar às mudanças que ocorrem no mundo e no Brasil. Um partido surge em determinado momento, a partir de uma realidade histórica, com um determinado conjunto de idéias, produto de uma determinada circunstância e lutas político-sociais de um momento determinado.
Foi o caso do PT e do PCB, do qual surgiu o PPS, por exemplo; ou PV que surgiu em determinado momento; ou PCdoB que surgiu na década de 60 no rompimento com o Partido Comunista Brasileiro; o PDT que era na verdade herdeiro do PTB, do qual foi roubada a sigla pela ditadura, o nome deveria ser PTB até hoje. Existem dois PTBs na verdade.
Então, os partidos podem viver crises de identidade, não é que todos os partidos vivem de crise de identidade. O PFL, por exemplo, que virou DEM – Partido Democrático, vive uma profunda crise de liderança, programa, proposta e identidade. O PSDB também, inclusive um partido profundamente dividido hoje, mas é ainda um partido forte.
O PT vive num momento de renovação e reforma, mas nos seus 27 anos, ele já se renovou e reformou muitas vezes. Havia uma falsa idéia de que o PT iria afundar nas eleições de 2006, mas ele foi o partido mais votado da Câmara, reelegeu governadores em estados importantes e o Lula se reelegeu.
Então, eu diria que os partidos podem e vivem crises de identidade, mas essas crises são crises de crescimento, crises porque o partido perdeu a sua base social ou deixou de responder a ela, ou as suas idéias e propostas estão ultrapassadas pelas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais que acontecem no mundo. É preciso ver cada caso. Eu não diria que há uma crise de identidade generalizada no país.
Qual a importância da Conferência Caio Prado Júnior, realizada para discutir a esquerda democrática e um projeto para o Brasil?
Eu acho fundamental, importantíssima, inclusive, quero saudar a Conferência porque considero fantástico que os partidos que são de esquerda e reivindicam o socialismo, debatam e discutam o Brasil sem medo, e busquem novos caminhos, propostas e soluções para os graves problemas que o nosso povo tem, e os desafios que o Brasil tem e que não são poucos.
Por mais que se faça no governo, por mais que o Lula tenha feito no primeiro governo e está fazendo no segundo com o PAC, o Plano de Desenvolvimento da Educação e tantas medidas, é evidente que se não tivermos um debate democrático, não confrontarmos as políticas e não buscarmos uma síntese democrática, nós não contribuiremos para que o Brasil encontre os seus caminhos.
O PT, considerado o maior partido da esquerda no Brasil, construiu uma ampla aliança partidária para exercer o poder e se viu envolvido em denúncias de corrupção e escândalos. Estes fatos podem trazer alguma consequência para os partidos de esquerda hoje e no futuro?
Evidente que traz conseqüências quando você é envolvido em denúncias de corrupção. Ser envolvido em denúncias de corrupção não é a mesma coisa de ser conivente ou prevaricar com a corrupção, são denúncias de corrupção na administração pública. É preciso ver qual é a participação de ministros do partido do governo.
Caixa 2 é uma coisa, corrupção é outra. Ainda que o Caixa 2 seja ilegal e deva acabar – e o PT está respondendo por isso na justiça comum e eleitoral – outros partidos fizeram e não estão respondendo.
Dois casos que saltam à vista são a compra de votos no período da reeleição, a famosa planilha Bresser em 98, que era o Caixa 2 da campanha Fernando Henrique; e a cobrança na justiça comum de uma dívida de comitê de Campanha de um candidato do PSDB em 2002, de 32 milhões de reais, que não foi declarado na justiça eleitoral. Então, o problema de Caixa 2 é muito mais amplo.
De denúncias, o próprio PPS viu um deputado seu envolvido em denúncias e foi até o Supremo, que o inocentou. Acho que não se deve pré-julgar, deve haver a presunção da inocência e dar o direito do processo legal e o ônus da prova ao acusador.
Eu não acredito que a crise que houve tenha afetado de forma definitiva nenhum partido, o PT ou outro partido de esquerda, mas ela mostra que é preciso reformar o sistema político eleitoral brasileiro. Os partidos precisam deixar de fazer uso do caixa 2.
Agora, eu não diria que há provas de corrupção do governo do presidente Lula, nem que o PT tenha sido conivente ou praticado corrupção. É preciso aguardar a justiça. Se valeu isso para o deputado Raul Jungmann, tem que valer também para os que no PT, como no meu caso, estão acusados. Aliás eu só estou acusado, nem processo existe ainda, porque o Supremo ainda não decidiu sobre a denúncia do procurador geral da República.
As políticas assistenciais do governo Lula, que tem o Bolsa-Família como carro-chefe, são eficazes no combate à pobreza e à miséria? Essas medidas podem ser consideradas políticas de esquerda? Por que?
Primeiramente, não são só políticas assistenciais. O Bolsa Família não existe sozinho, o governo Lula criou uma série de outros programas de políticas públicas, porque isso é política pública.
Existe Lei de Assistência Social, a Previdência Social e programas sociais como o Bolsa Família, mas também o Saúde Bucal o Brasil Sorridente, a Campanha Contra o Analfabetismo, o Médico de Família, a Farmácia Popular, o Apoio à Agricultura Familiar, o PROUNI, o Pró-Jovem. Um conjunto de políticas necessárias e indispensáveis para atacar problemas emergentes e urgentes.
Aliado a isso, o governo criou 4 milhões e meio de empregos formais, aumentou o valor do salário mínimo real, aumentou o valor das pensões, a cesta básica caiu, a inflação foi muito reduzida.
O Brasil teve um crescimento do emprego e da renda, teve também um crescimento dos recursos que são aportados para as áreas de políticas públicas.
Eu diria que ainda há muito a fazer, por isso são importantes o Plano de Desenvolvimento da Educação, lançado agora, a universalização do ensino médio, a profissionalização do ensino, como também uma melhora na qualidade, aumentando o piso salarial dos professores e professoras, e depois a capacitação dos professores, avaliação.
Ou seja, há uma política na área de educação, da saúde pública com a consolidação dos SUS. Há uma política na área da Agricultura Familiar, uma política de emprego e renda e também o Bolsa Família, que é uma política emergente, mas que também tem uma porta de saída.
O Bolsa Família não existe sozinho, além da presença da escola, do pré-natal, medicina preventiva. Há toda uma série de programas que vem crescendo e que procura alfabetizar, dar o crédito e a possibilidade de ter uma renda, um emprego. E também o emprego no país. Se o país cresce agora 6 ou 7% e cresce 2 milhões de emprego por ano, evidentemente, o Bolsa Família vai perdendo o seu papel.
Evidente que o Bolsa Família é uma política de esquerda, porque se combater a fome e a miséria não é objetivo da esquerda... Se você tem fome e não pode dar uma renda para a sua família poder se alimentar, poder se alfabetizar, poder mandar o filho na escola e entrar na cidadania, inclusive, com acesso a emprego e a renda. Se isso não é uma política de esquerda, eu não sei o que é uma política de esquerda.
A reforma política que se discute no Congresso propõe mudanças pontuais, como maior rigor na fidelidade partidária, introdução de listas partidárias fechadas nas eleições, financiamento público de campanha, cláusula de barreira etc., além de colocar em debate temas como o voto distrital e o parlamentarismo. Qual a sua opinião sobre a reforma?
Uma reforma política mínima, que resolva o principal problema do Brasil neste momento, que é a infidelidade partidária, o troca-troca de partidos, a falta de maiorias no Congresso, e, cada vez maior, a influência do poder econômico e das emendas parlamentares, licitações e das empresas no processo eleitoral.
Você pode proibir a coligação proporcional, diminuir a cláusula de barreiras para 2% e tomar outras medidas, mas o urgente e necessário é a fidelidade partidária, o financiamento público e o voto em lista, ou o voto distrital misto proporcional – mas como este depende de emenda constitucional, é mais complexo.
Se nós queremos atacar o principal problema que se revelou nos últimos dez anos na política brasileira, que é o Caixa 2 e que começa em 98, como a própria investigação mostrou em Minas Gerais, e tem sintomas da existência desse Caixa 2 em todos os partidos políticos, em todo o sistema eleitoral, em todo o processo desde vereador, prefeito até presidente da república, eu acredito que a reforma necessária, urgente e possível é essa.