quarta-feira, 6 de junho de 2007

Entrevista: Luiz Sérgio Henriques, do site Gramsci

Luiz Sérgio Henriques é editor do site Gramsci e o Brasil, ensaísta, tradutor e um dos organizadores das obras de Antonio Gramsci em português, especialmente a nova edição das "Cartas do Cárcere".

O site editado por Luiz Sérgio divulga a obra de Gramsci, fundador do Partido Comunista da Itália e uma das maiores referências da esquerda mundial, e publica ensaios sobre a política brasileira, "com o objetivo de contribuir com a democracia no Brasil".

"O site Gramsci pode ser uma voz de equilíbrio numa conjuntura de crise como a atual. E, naturalmente, pode ajudar para que se formulem boas soluções para o conjunto da população, especialmente os setores desfavorecidos", afirma.

Veja a entrevista de Luiz Sérgio Henriques ao Blog do PPS/SP:

Na sua opinião, o que é ser de esquerda hoje no Brasil?

Ser de esquerda significa, antes de mais nada, ter uma sólida e inabalável referência democrática e constitucional, despida de toda e qualquer ambigüidade, e ao mesmo tempo operar para que, no quadro da democracia política, resolva-se a prolongada “crise do desenvolvimento nacional” que nos atinge há quase uma geração.

Isso é muito tempo, destrói esperanças, sacrifica as novas gerações, lança a sociedade num selvagem jogo de soma zero. Transformou-nos, por exemplo, num país de emigrantes pela primeira vez na história, contrariando nossa vocação “americana” e atingindo duramente nossa auto-imagem coletiva.

Acredito que, se conseguíssemos reunir consistentemente, ao longo de várias décadas, democracia política e desenvolvimento, teríamos um potente ciclo virtuoso, possibilitando atacar pela raiz, desde agora, com a radicalidade requerida, a inadmissível desigualdade social que envenena nossa vida cotidiana, especialmente nos grandes centros, mas já não só neles. Tal ciclo virtuoso tornaria o Brasil um país muito interessante para se viver.

Para o eleitorado, ainda existe uma diferença clara entre esquerda, centro e direita?

Mesmo intuitivamente, o eleitor, ou um bom número deles, ainda se deixa guiar segundo estes parâmetros. O problema, aqui, é que a crise da sociedade é geral, atinge a todos, esvazia as grandes idéias, e os atores de todo o espectro passam a fazer uma política medíocre, semelhante à navegação de cabotagem.

Além disso, pode haver uma esquerda ruim, incapaz de governo, com diagnósticos pobres, com limites culturais e políticos mais ou menos graves. Esta talvez seja uma novidade para muitos, já que, nos anos do regime militar, tendíamos maniqueisticamente a achar que a moralidade pública, a boa ação democrática etc., eram monopólio da esquerda. Uma visão muito superficial, que é até bom deixar de lado de uma vez por todas.

Por que os partidos políticos vivem hoje uma crise de identidade?

Esta crise não é só brasileira, o mal-estar generalizou-se até mesmo nas sociedades democráticas mais amadurecidas, acostumadas à presença “orgânica” de partidos de massa, de sindicatos e do associativismo dos “subalternos”.

É possível dizer, esquematicamente, que hoje os partidos e o mundo da política aparecem descolados da sociedade, aparecem mais como agências de governo do que como representantes da sociedade.

Sem perder de modo algum a capacidade de governar sociedades complexas, e sempre tomando distância de qualquer tentação dirigista, os partidos certamente devem lançar novas pontes para o mundo social, os novos sujeitos e suas demandas também novas.

Vai ser um movimento difícil, porque este mesmo mundo social, por seu turno, está fragmentado, sofre o impacto de modos de viver, de produzir, de consumir etc., ainda não inteiramente “metabolizados”; e, além disso, mostra-se atravessado por corporativismos, que, não raro, disfarçam-se até mesmo com um suposto radicalismo pré-político ou antipolítico. A única certeza, neste ponto, é que o fosso crescente entre política e cidadania é o caminho para o desastre.


Qual a importância da Conferência Caio Prado Júnior, realizada para discutir a esquerda democrática e um projeto para o Brasil?

Espero, com sinceridade, que esta Conferência contribua para a necessária revisão de programas e métodos da esquerda entre nós. Esta é uma tarefa que vai muito além de qualquer partido isoladamente. Analisar criticamente o que foi a “primeira esquerda” (basicamente, o PCB), o que tem sido a “segunda esquerda” petista, hoje no poder – tudo isso constitui um exigente programa para os anos a vir.

Um processo doloroso, sem dúvida, mas inevitável, que implica superar a perspectiva da “explosão revolucionária”, do “assalto ao poder”, implica ajustar contas com aquilo que Astrojildo Pereira, este singularíssimo intelectual, chamava de “velho e tenaz sectarismo”. E isso, afinal, para nos colocarmos à altura do nosso país, das suas tradições de cultura, das enormes potencialidades do nosso povo e da “civilização brasileira”.

O PT, considerado o maior partido da esquerda no Brasil, construiu uma ampla aliança partidária para exercer o poder e se viu envolvido em denúncias de corrupção e escândalos. Estes fatos podem trazer alguma consequência para os partidos de esquerda hoje e no futuro?

O grande escândalo, o que até hoje me deixa desconcertado, do ponto de vista da ética pública, foi a resistência do PT em participar de momentos decisivos da redemocratização: refiro-me não só à decisão de não participar do colégio eleitoral, mas muito especialmente à relação complicada com a Constituição de 1988, que este partido, como sabemos, se recusou a homologar.

Isto estimulou uma retórica, um hábito, uma “cultura” do rechaço, da recusa, da denúncia “contra tudo o que está aí”. Estimulou o “patriotismo de partido”, o salvacionismo, o messianismo “redentor”.

A meu ver, o que vimos depois de 2002 – o comportamento típico de um “partido de ocupação”, o desrespeito a instituições básicas da República, como o Congresso – estava inteiramente presente neste descaso original com a democracia. Não foi a primeira vez que a esquerda brasileira, inclusive a comunista, se comportou deste jeito. Terá sido a última?

As políticas assistenciais do governo Lula, que tem o Bolsa-Família como carro-chefe, são eficazes no combate à pobreza e à miséria? Essas medidas podem ser consideradas políticas de esquerda? Por que?

Políticas como o bolsa-família são emergenciais e até podem ter um impacto positivo em certas regiões ou bolsões mais pobres. Em princípio, ninguém pode ser contra isso, dada a dimensão da desigualdade social.

É evidente que há efeitos colaterais deletérios, como o reforço do líder carismático e da sua ligação direta com as massas de deserdados. O que de pior pode acontecer, no entanto, é que políticas desse tipo cancelem ou atenuem o grande debate sobre a crise da sociedade e dos rumos a seguir.

Sem política efetiva de crescimento, não há bolsa-família que dê conta da miséria. Mas, naturalmente, quando falamos nesse ponto, o que está em causa é um crescimento de novo tipo, fortemente qualificado tanto do ponto de vista social quanto ambiental. E que, no curso da sua efetivação, dê dignidade às pessoas e torne supérfluas as medidas paliativas.

A reforma política que se discute no Congresso propõe mudanças pontuais, como maior rigor na fidelidade partidária, introdução de listas partidárias fechadas nas eleições, financiamento público de campanha, cláusula de barreira etc., além de colocar em debate temas como o voto distrital e o parlamentarismo. Qual a sua opinião sobre a reforma?

A reforma política é um tema especialmente difícil. Além de certas medidas já consensuais (como a liquidação do indecente troca-troca de partidos, que acontece até mesmo no período entre a proclamação dos resultados e a posse dos eleitos!), convém ter bastante claro que nenhum sistema eleitoral, por si mesmo, resolve magicamente os problemas contemporâneos da democracia.

A lista fechada resolve alguns problemas e cria outros, e o mesmo pode ser dito do voto distrital ou de qualquer outro ponto de reforma.

Convém tentar combinar, sempre, governabilidade e representatividade; em nome da governabilidade, pode-se até pensar em certos mecanismos simplificadores da “complexidade”, mas o eixo deve ser a representatividade, sem a qual o sistema político se autonomiza e acaba girando no vazio.

E nada, absolutamente nada pode subsistir sem uma radical reforma do Judiciário, para que este produza respostas tempestivas aos inúmeros casos de abuso, fraude, corrupção, malversação de recursos.

Lembro que só em 2006 é que Paulo Maluf foi absolvido da acusação de ter doado alguns fuscas aos jogadores da seleção de 1970! Sem resolver o nó do Judiciário, acredito que se poderá variar mais ou menos à vontade a forma de governo, as modalidades de voto e todo o resto, mas o resultado final não será muito diferente do que temos visto e nos preocupa tanto.


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