A nomenklatura do PT quer que a patuléia pague as campanhas sem direito a escolher os candidatos
Nesta semana, possivelmente amanhã, o comissariado do Partido dos Trabalhadores poderá fechar questão na defesa da instauração do voto de lista para as eleições de deputados. Estará dado um poderoso passo para a cassação do direito dos cidadãos escolherem seus representantes na Câmara.
Aos trancos e barrancos, esse direito está aí desde o século 19. A nomenklatura do PT, assim como as do PSDB e do DEM, querem impor um sistema pelo qual os eleitores ficarão obrigados a votar nos partidos, elegendo maganos colocados numa lista de acordo com as preferencias dos donatários das siglas. É um sistema que se parece mais com as ordenações manuelinas do século 16 do que com a tradição do sistema eleitoral brasileiro.
Hoje o eleitor escolhe um candidato e seu voto vai para o grande panelão da sigla pela qual ele concorre. O total de votos obtidos pelo partido num Estado é dividido por um quociente que relaciona o tamanho do eleitorado com o número de vagas em disputa. São empossados os candidatos que tiveram maior votação. Nesse sistema vota-se num, mas freqüentemente ajuda-se a eleger outro. No Rio, os 51 mil votos dados ao tucano Márcio Fortes, ex-presidente do BNDES, socorreram o pecúlio de Silvio Lopes, o ex-prefeito de Macaé que teve a colaboração de 14 parentes na administração da cidade.
Não haverá mais o voto no candidato. Nem em Fortes, nem em Lopes. Se o PT paulista puser o Professor Luizinho (59 mil votos em 2006) na frente de Arlindo Chinaglia (170 mil votos), Luizinho terá precedência.
A pergunta é obvia: quem faz a lista e quem a ordena? Os partidos, com suas obras e suas pompas. Um bom exemplo de democracia partidária está na forma como o PT tratou o assunto. Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrou que 63% da militância do partido defende a manutenção do atual sistema eleitoral.
A bancada de 83 deputados discutiu a proposta e dividiu-se, com leve vantagem para a lista. O comissário José Dirceu assombrou-se: "Andam propondo que a bancada do PT seja liberada para votar a reforma política, ou seja, cada deputado ou deputada vota segundo sua convicção. Quer dizer, estão propondo o fim do PT. É demais!" (Dirceu retificou essa afirmação ao perceber que, com o fechamento da questão, as convicções irão às favas e seu PT sobreviverá.)
O comissariado petista convocou duas reuniões da Comissão Executiva. Uma para amanhã, outra para quinta-feira. Como seus 21 membros querem o voto de lista, a bancada e um pedaço da militância poderão ser atropeladas. Isso no PT que é relativamente democrático. Nele os defensores das listas expõem-se à contradita. No PSDB e no DEM, há grão duques cabalando o golpe eleitoral sem botar o rosto na vitrine.
Arma-se a hegemonia das máquinas partidárias. Salve José Dirceu e José Genoino, ex-reis do PT. Alô Eduardo Azeredo, ex-príncipe do PSDB. Viva Roberto Jefferson, imperador do PTB. Avoé Valdemar Costa Neto, sultão do PL. Alvíssaras, Pedro Corrêa, ex-faraó do PP.
O golpe eleitoral tem tudo para ser aprovado pelos parlamentares de um Congresso bafejado por hábitos de apropriações desmoralizantes. Não custa lembrar as palavras de Renan Calheiros na última posse de Lula: "Quem morreu não foi a democracia, não foi a ética, quem apodreceu foi o nosso sistema político uninominal". A menos que "sistema político uninominal" seja um codinome da "gestante", o doutor Calheiros quer adaptar as regras do jogo às conveniências de sua parentela.
O cambalacho ilumina os deputados porque uma gambiarra determinará que as listas partidárias da eleição de 2010 sejam encabeçadas pelos parlamentares eleitos em 2006. Em poucas palavras: A prorrogação do mandato para cerca de 80% da Câmara.
Tungada no direito de escolher seus candidatos, a patuléia será convidada a pagar a conta. Criando-se o financiamento público das campanhas, os contribuintes pagarão R$ 7 por eleitor alistado.
Argumenta-se que se a choldra pagar, acabarão as caixas paralelas.
Parolagem. As caixas da malandragem só acabarão quando seus beneficiários tiverem medo de ir para cadeia. Sem grades, sempre que houver alguém querendo dar dinheiro a candidato, haverá algum mensaleiro mordendo o mercado. O financiamento público das campanhas eleitorais brasileiras será mais um caso de taxação das vítimas.
Estima-se que, com os mimos da reforma, o PRB poderá ficar com R$ 8 milhões. Pouca gente sabe, mas PRB é o Partido Republicano Brasileiro, que elegeu um só deputado. O MDB, com 93 cadeiras, embolsará R$ 136 milhões. Isso sem contar o prestígio acumulado em diretorias da Petrobras, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil.
Depois de tanta notícia ruim, uma boa. Há duas boas vozes petistas contra o voto de lista. São o deputado Carlos Zarattini e o senador Eduardo Suplicy. Zarattini foi o quinto mais votado na bancada do PT de São Paulo. Poderia ser um crítico silencioso da maracutaia, pois se ela for consumada, seu mandato será prorrogado.
Há poucas semanas ele foi à tribuna da Câmara e advertiu:
"Em vez de realizarmos campanhas nas ruas discutindo e debatendo com o eleitor, levando-lhe nossas propostas, ouvindo o que ele tem a dizer -o que é, inclusive, muito importante para reciclarmos nossos pontos de vista-, vamos levar essa disputa da formação da lista para dentro dos partidos. E salve-se quem puder, porque, lá dentro, a briga vai se dar em outros termos".
Quais termos? Perguntaria Delúbio Soares.
* Elio Gaspari é jornalista. Em 1984, ganhou uma bolsa de três meses do Wilson Center for International Scholars. Sua intenção era escrever um ensaio cujo título já estava definido: Geisel e Golbery, o Sacerdote e o Feiticeiro. Em cerca de cem páginas, pretendia explicar por que entre 1974 e 1979 o ex-presidente e o chefe do seu Gabinete Civil desmontaram a ditadura militar, quando na década anterior, entre 1964 e 1967, haviam ajudado a construí-la. Dezoito anos depois, o que era um ensaio se transformou em cinco livros. Começou sua carreira jornalística no Semanário Novos Rumos, foi assistente do colunista Ibrahim Sued. Trabalhou no Diário de São Paulo, na revista Veja e no Jornal do Brasil. Sua coluna é hoje publicada na Folha de São Paulo, no O Globo, no Zero Hora e em mais outros dez jornais.