domingo, 24 de junho de 2007

Artigo: Do épico à chanchada

RUBENS RICUPERO *

Dois discursos de defesa separados por 142 anos balizam o naufrágio do Senado. O primeiro, de Paranhos, foi épico na duração e substância. O segundo, do atual presidente da Casa, não passou de farsa com sotaque brasileiro de chanchada.

Em "O Velho Senado", Machado de Assis fez o retrato quase cinematográfico da sessão de 5 de junho de 1865. Plenipotenciário no Prata, Paranhos assinara a convenção para pôr fim à interminável Guerra Grande uruguaia, ganhando a República Oriental como aliada no conflito recém-começado com o Paraguai.

O "Diário do Rio", para o qual Machado cobria o Senado, atacara o acordo como demasiado concessivo, provocando a demissão do futuro Visconde do Rio Branco. Este, de volta à Corte, foi defender-se no Senado.

"Não a vaidade, senhor presidente...", as primeiras palavras, lembra o autor de "Dom Casmurro", foram antes bradadas que ditas. O senador por Mato Grosso começou a falar à uma hora da tarde. "Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e a voz ia saindo meditada e colorida."

Conclui Machado: "Eram nove horas da noite quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga nele nem no auditório, que o aplaudiu. Foi uma das mais fundas impressões que me deixou a eloqüência parlamentar".

Comparar ao momento épico do Senado o orador, o assunto sórdido e, sobretudo, o cúmplice auditório da farsa em curso seria covardia. Tudo no contraste com aquele longínquo passado causa vergonha. Lembrava Machado de Assis: "Os senadores compareciam regularmente ao trabalho. Era raro não haver sessão por falta de quórum. Uma particularidade do tempo é que muitos vinham em carruagem própria" (não em carro oficial). "Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante."

Mais que a assiduidade e outros aspectos formais, o que seduz na evocação machadiana é a dignidade, a força, a gravitas romana dos chefes políticos, Eusébio, Zacarias, Olinda, Nabuco de Araújo, Paranhos.

Dir-se-á que nada disso tinha muito a ver com o país real, que era escravagista. O que se perdeu em cultura e decoro ter-se-ia ganho na representatividade do Congresso, que, reza a opinião convencional, teria a "cara" do povo real.

Seria verdade se os novos compensassem a rusticidade e incultura com a operosidade e o senso prático de empresários. Ou se fossem eficazes advogados dos pobres. Ora, o que temos é Congresso mais relevante para produzir escândalos que para legislar ou investigar.

A própria representação é relativa. Os escolhidos pelo Imperador provinham, ao menos, de lista de votados. Os suplentes atuais devem o lugar ao arbítrio ou ao dinheiro para a campanha, como admitiu grotesco exemplar da categoria.

O Brasil do presente é melhor que o de Machado de Assis em muito, mas não em tudo, a começar pela ausência do "Bruxo do Cosme Velho".

Negar isso não é ciência, mas a usual complacência brasileira com os próprios defeitos.

Ao ler Machado, temos pena de não mais podermos sentir, como ele, respeito pelos políticos. Consola-nos, porém, pensar como Domício da Gama: "Machado de Assis, Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco fazem falta ao meu coração de brasileiro confiado no futuro de uma nação que teve dessas inteligências".

* RUBENS RICUPERO, 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, na Folha de S. Paulo.