quinta-feira, 19 de abril de 2007

Memória: a introdução dos caça-níqueis no Brasil

Já que o assunto do momento é a máfia do jogo, tomo a liberdade de desarquivar uma reportagem de dez anos atrás.

Foi um legítimo "furo" jornalístico, matéria que revela fatos e informações exclusivas. Eu era repórter da Folha de S. Paulo no ano de 1997 e as primeiras máquinas de caça-níqueis começavam a surgir nos bares da cidade.

Uma rápida investigação sobre o assunto levou ao nome do empresário Ivo Noal (segundo a própria polícia, na época, controlador de 40% do jogo do bicho em todo o estado de São Paulo) e a ramificações da máfia siciliana no Brasil e na Argentina (leia também 1 e 2)

Bares de SP instalam caça-níqueis

Máquinas de jogo de azar, proibido no Brasil desde 1946, funcionam com moeda de R$ 0,25

Maurício Rudner Huertas
da Reportagem Local


Máquinas caça-níqueis - tradicional jogo de azar proibido no Brasil desde 1946 - começam a aparecer em bares, lanchonetes e casas de bingo de São Paulo.

Chamado de "Bingo Mania", o equipamento funciona com a introdução de uma moeda de R$ 0,25. O apostador puxa uma alavanca e, conforme a sequência de símbolos obtida no painel, poderia ganhar de volta o valor apostado ou premiações maiores, de valor indeterminado.

A introdução dos caça-níqueis no país é feita pela empresa Nevada Diversões, Comércio, Importação e Exportação Ltda., sediada na alameda dos Arapanés, 195, em Moema (zona sudoeste de SP).

A empresa está oficialmente registrada em nome do português Paulo Manuel Polido Garcia Zilhão e do italiano Franco Narducci, que representaria a empresa inglesa Jebra na sociedade.

Empresários locatários do equipamento apontam Ivo Noal, seu filho Cristian e o sobrinho Eduardo como intermediários entre a empresa Nevada Diversões e os locatários. Também Vitor Manuel da Silva Franco, sócio da empresa até julho deste ano, cuida da distribuição das máquinas nos pontos determinados por Noal.

Considerado o chefe dos chefes do jogo do bicho paulista, Noal é, segundo os empresários, quem negociaria e avalizaria os pontos para implantação das máquinas.

Funcionários de um bar na rua Roma, na Lapa (região noroeste de SP), dizem que o dono de um ponto "bonzinho" lucra R$ 500 por semana com os caça-níqueis. Esse valor representa uma comissão que varia de 25% a 40% sobre o faturamento de cada máquina. O restante é repassado à Nevada Diversões.

Cerca de 200 máquinas já estariam implantadas em São Paulo, segundo atendentes da empresa. Os interessados em instalar os caça-níqueis não têm qualquer despesa. Apenas recebem a participação no faturamento em troca da cessão do ponto.

Segundo a polícia paulista, Noal controla 40% do jogo do bicho no Estado. Condenado a 12 meses de prisão por jogo ilegal, Noal conseguiu a suspensão da pena, mas responde a processos por suspeita de envolvimento em três homicídios.

A Nevada Diversões, constituída em 24 de julho de 95, mudou de mãos quatro vezes no período. A última mudança ocorreu em setembro passado, com a entrada na sociedade da empresa Jebra, representada por Narducci.

Empresa evita se pronunciar

Os empresários Franco Narducci e Paulo Manuel Polido Garcia Zilhão, donos da empresa Nevada Diversões, foram procurados ontem pela Folha, mas não quiseram se pronunciar.

Segundo um homem que se identificou como Antunes e que seria funcionário da Nevada, eles não poderiam falar pela empresa.

"Ser proprietário não significa estar autorizado a falar", explicou. "Quem poderia falar seria o advogado, que está no exterior."

O empresário Ivo Noal, procurado na sede da holding Vancouver, controladora das empresas da família, também não atendeu a reportagem.

Segundo uma atendente identificada como Cláudia, "ele viaja muito e não pode ser localizado". Sobre Luigi Romano, que gerencia os negócios de Noal, ela informou que ele estaria muito ocupado durante todo o dia e não poderia atender.

Também não atenderam as ligações Cristian Noal e Vitor Manuel da Silva Franco. Segundo a atendente Ana Paula, da Nevada, eles seriam responsáveis pela comercialização das máquinas.

Decreto de Dutra proibiu jogo

Os chamados jogos de azar são proibidos no país desde a publicação do decreto 9.125, de 1946, pelo então presidente Eurico Dutra.

Cabe à Polícia Civil a repreensão aos jogos ilegais e a apreensão dos equipamentos.
O delegado da Seccional Oeste, Camilo Lellis de Salles Neto, responsável pela região que é considerada pela própria polícia como reduto de Noal, afirmou à Folha desconhecer os caça-níqueis.

"Estou determinando providências imediatas às delegacias da minha área", disse. "Além de ilegais, essas máquinas atraem crianças e adolescentes para o jogo."

O promotor do Ministério Público Gabriel Cesar Zacarias de Inellas, autor de várias denúncias contra Ivo Noal e os bicheiros paulistas, considera o caso dos caça-níqueis mais uma contravenção a ser investigada.

"Mesmo que seja condenado pela introdução dos caça-níqueis, caberá a Ivo Noal uma pena mínima, talvez 15 dias de prisão, que pode ser convertida em multa", disse Inellas.

Máquina pode ser adulterada

O professor de estatística Flávio Vágner Rodrigues, que na década de 80 participou da investigação das máquinas de videopôquer, considera possível a manipulação de resultados nos caça-níqueis.

"Ficou provado naquela época que os prêmios maiores do pôquer nem sequer estavam programados", afirma. "Os donos das máquinas tinham simplesmente excluído essa probabilidade."

Segundo Rodrigues, apenas uma investigação minuciosa no programa utilizado pelas máquinas caça-níqueis pode esclarecer se existe qualquer irregularidade.

"É bem possível que nessas máquinas também haja um vício em favor da casa", diz.

Segundo uma atendente da Nevada Diversões, identificada como Ana Paula, a máquina seria programada para dar uma "quantidade certa" de prêmios.

Há ainda uma coincidência que desafia as probabilidades. Nevada (Estado norte-americano) e Vancouver (cidade canadense), nomes das empresas envolvidas, são localidades onde o jogo é legalizado.

(reportagem publicada na Folha de S. Paulo de 09/10/1997)