O lulismo é uma nova categoria política.
Que troço é esse? Tem um troço novo aí. Lula inventou, neste governo, a feijoada ideológica.
Os tucanos são bichos hesitantes, cheios de "se" e de "talvez". Lula está realizando, na prática, uma espécie de baixo-tucanismo, unindo tudo, homogeneizando tudo, num sarapatel político-partidário. Lula sacou que o PSDB não tem mais programa. O PSDB existia através de FH, Serra, Tasso e mais meia dúzia, mas sem militância alguma. Que partido é esse, ilegível, sem plataforma clara, a não ser uma vaga promessa de elegância socialdemocrata mais complexa?
O PT falava coisas mais óbvias e mais legíveis: fome, rico e pobre, imperialismo, Estado. O PT deu mais ibope, foi mais fácil de entender.
Mas, graças à intervenção salvadora de Roberto Jefferson, para sorte do Lula e do Brasil, acabou o PT-bolchevista voluntarista, infiltrado no Planalto. E, cercado de peleguismo sindical, nasceu o "lulismo", que é invulnerável, resiste como almofada às espadas, é molenga, plástico, adaptável. Lula continua a usar a linguagem do PT (na mídia e no marketing), junto com uma prática inominável, um tucanismo-peemedebista-pessedista- sei-lá-o-quê.
Qual o projeto do lulismo? Resposta: união de todos para o bem da imagem do Lula em nossa História. Só. O lulismo esvazia nossa indignação, nossa vontade de crítica, de oposição. Para ser contra o quê, se ele é "a favor" de tudo?
Como escreveu muito bem Demétrio Magnoli, outro dia no GLOBO, a propósito da adesão do professor Pardal, o Roberto Mangabeira Unger, ao governo. (O professor Pardal é aquele jurista americanizado e afascistado que fala com o mesmo sotaque do Henri Sobel e que declarou, há um ano, que "Lula devia ser impichado e que seu governo era o mais corrupto da História").
Diz Magnoli: "Lula não convidou Mangabeira para o círculo ministerial por não ter lido o que ele escreveu contra ele, mas, precisamente, por ter lido. Agindo com requintada crueldade, o presidente inventou, para abrigar o intelectual, uma Secretaria de Ações a Longo Prazo, que é uma piada literal já chamada de Sealopra. Mas a operação não se cinge à humilhação e serve a um objetivo presidencial estratégico: dissolver a ética da convicção no ácido da galhofa pública".
Esse texto é na mosca. É o segredo da estratégia do lulismo: a todos cooptar e a todos desmoralizar, enfiando-os no círculo de um poder abstrato para nada, já que ele não fará nada, atolado na feijoada das alianças, a não ser o mínimo necessário, ajudado por seu imenso "rabo-para-a-lua" - a economia mundial bombando como nunca. Não precisa nem ter governo, pois tudo anda sozinho. Seu Executivo estatizante só serve para atrapalhar. Outro dia, disse-me um ex-ministro do Planejamento: "Eles preferem que as estradas apodreçam a privatizá-las".
Eu já achei que o Lula poderia ficar autoritário, no segundo mandato, mas Lula é bem mais esperto que eu: ele inventou a manemolência tão nossa, o bundalelê partidário, o coração-de-mãe onde sempre cabe mais um. Lula se apropriou da "cordialidade" tradicional para esvaziar resistências. Lula não quer se aporrinhar, põe qualquer chapéu. Ele é ecumênico: todas as religiões podem adorá-lo.
Lula desmoralizou os escândalos, vulgarizou as alianças, se abraçou com Barbalho, Newtão, todos... Ele subverteu tudo, inclusive a subversão. Os comunas xingam-no "na moita", pois estão todos bem empregadinhos; hoje em dia, na Argentina e na Venezuela, ele já é chamado de "neoliberal". E nós estamos nos acostumando à decepção, aprendendo a querer pouco.
Tem um troço esquisito aí...
Tínhamos duas formas de esquerda: uma light e uma dura. As duas se liquefizeram. Ficou uma vaga saudade de FH, enquanto Lula usa os slogans da velha esquerda, da boca para fora, deprimindo os acadêmicos que ele seduzira.
O que dói é imaginar o que Lula poderia fazer, com maioria no Legislativo e oásis econômico mundial. Mas não faz, não quer fazer marola, chatear ninguém. Não há nem oposição e nem "situação" claras. Só ele, se movendo no meio: um messias sem programa, um messias de si mesmo.
Tem um troço esquisito aí, mas ninguém sabe o que é. Tem um troço na cara das pessoas, na esperança das pessoas, um troço estranho que tentamos entender, mas que passa, como um passarinho ou um passaralho no ar. Tem um troço poluindo a cabeça das pessoas, o afeto das pessoas. "Precisamos combater esse troço", pensamos, mas o diabo é que esse troço oculta a doença e a solução. As velhas categorias para explicar o Brasil morreram. Já há uma pós-miséria, um pós-poder, uma pós-corrupção, uma pós-direita, um pós-crime, uma pós-língua da violência que grunhe, uiva, não fala.
Esse troço é feito de sobras do ferro-velho mental do país, de oligarquias felizes e impunes, de um Judiciário caquético, esse troço deforma a cara dos políticos, esse troço está nas barrigas, nas gravatas escrotas, na gomalina dos cabelos, nas notas frias, na boçalidade dos discursos, nos superfaturamentos, esse troço é um estafermo fabricado com detritos de vergonhas passadas, togas de desembargadores, bicheiros, fardões de academia, cérebros encolhidos, olhos baços, depressões burguesas, hipersexualidade rasteira, doenças tropicais voltando, dengue, barriga d"água, barbeiros e chagas, cheiros de pântano, esse troço é uma enchente que não drenou, bosta que não sumiu, ovo gorado, irresponsabilidades fiscais, assassinos protegidos no Congresso, furtos em prefeituras, municípios apodrecidos, decapitações, pneus queimados, ônibus em fogo.
Esse troço, esta xicaca, estava dormindo há séculos e agora despertou, para criar um buracão no país, esse troço sempre esteve aí, mas, agora, ressuscitou.
Volto a Magnoli: "O lulismo persegue tenazmente a meta de esvaziar o fórum, reduzindo a "ágora" a uma praça de mercado e convertendo todos os cidadãos em idiotas".
E nossa desgraça paralítica é tal que acho que é até "melhor" assim: que permaneça essa gosma geral, em vez do voluntarismo bolchevo-dirceuzista revolucionário que ia prevalecer. A que ponto chegamos.
(Artigo de Arnaldo Jabor publicado no jornal O Globo em 08/05/07)