domingo, 20 de maio de 2007

Entrevista exclusiva: Hamilton Garcia de Lima

Dando continuidade aos debates para a Conferência Caio Prado Jr., que será realizada no mês de agosto, em Brasília (DF), e pretende discutir os novos rumos da esquerda democrática e seus projetos para o Brasil, trazemos mais uma contribuição valiosa.

A seguir, leia uma entrevista exclusiva para o Blog PPS/SP com o sociólogo, cientista político e historiador Hamilton Garcia de Lima.

Hamilton Garcia é bacharel em Sociologia e Política pela PUC/RJ, mestre em Ciência Política pela Unicamp/SP e doutor em História pela UFF/RJ; atualmente trabalha como pesquisador e docente do Laboratório de Estudo da Sociedade Civil e do Estado / Centro de Ciências do Homem, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF-DR/RJ).

1) Na sua opinião, o que é ser de esquerda hoje no Brasil?

Sobretudo ser capaz de manter uma postura crítica em meio à ressurgência do Estado patrimonialista, depois de 22 anos de redemocratização com mudanças sociais tópicas, além de manter a integridade pessoal diante de tanto dinheiro e cargos que circulam nos subterrâneos e na superfície institucional a comprar o silêncio ou a adesão de muitos ex-críticos barulhentos do sistema.

Penso que o atual governo, como todos os governos minimamente legítimos, devam ser disputados em seus espaços internos e externos, mas esta infiltração não pode ser confundida com cooptação, que implica uma guinada efetiva de pensamento e vontade em detrimento da perspectiva anterior de mudanças profundas.

2) Para o eleitorado, ainda existe uma diferença clara entre esquerda, centro e direita?

No plano da política mais geral, creio que não. Depois que o PT fracassou na tentativa de iniciar a demolição da democracia "fisiológica" erigida pelo PMDB, PFL e PSDB, colocando em seu lugar uma outra verdadeiramente representativa e participativa, através de uma profunda reforma política, penso que todos os gatos ficaram efetivamente pardos em meio ao butim escancarado dos recursos públicos da nação.

Para piorar a história, o PT, único partido democrático e moderno entre os grandes, apequenou-se no papel de esteio do projeto pessoal de seu líder máximo (LILS* - referência a Luiz Inácio Lula da Silva), que se resume a um fascínio por palácios complensado por uma visão benevolente do Estado.

A sensação de mal-estar diante do desprezível "consenso" fisiológico organizado por LILS neste 2º mandato, sob a égide - depois de todos os horrores que vieram à público em 2005/06 - do "não se mexe em time que está ganhando", foi agravada pela cumplicidade da oposição tucano-pefelista, que, por oportunismo e incompetência, praticamente abdicou da função tribunícia que o eleitorado lhe delegara nas últimas eleições.

Por outro lado, a extrema-esquerda, depois de uma campanha corajosa, embora estrategicamente limitada como é de seu feitio, recuou, no segundo turno de 2006, diante do blefe populista de um segundo mandato "de esquerda", deixando-se arrastar pela crença ingênua do resgate de um Presidente medularmente comprometido com o sistema e seus métodos e, apesar disto, popular.

O resultado foi o desperdício de toda a campanha contestatória do 1º turno e um mergullho desconcertante no anonimato em 2007.

A bonança do atual governo petista se parece muito com a do 1º governo tucano, tanto na ênfase do controle inflacionário - inclusive lançando mão da âncora cambial e sua sensação de riqueza artificial -, quanto no arranjo pragmático de poder com os setores conservadores e fisiológicos, sinalizando pouca disposição efetiva de enfrentar e resolver os grandes nós do desenvolvimento nacional que, para a esquerda, estão associados à feudalização histórica do Estado e seu "aggiornamento" pelos populistas.

A clara incapacidade dos últimos governos liberais e corporativos de esquerda, desde 1994, de formular saídas para os grandes impasses estratégicos do país, deveria, numa situação normal de competitividade, significar a possibilidade de ascensão da direita tradicional.

Ocorre, todavia, que esta co-participa - embora não em condição de igualdade - da farra nos Três Poderes, tornando improvável tal meta. A opção passaria a ser, no médio e longo-prazo, diante do agravamento do crítico quadro social, do ressurgimento das proposituras autoritárias de reformas "pelo alto" - não necessariamente sob as formas até aqui conhecidas.

Em se confirmando o aumento da insegurança crescente dos cidadãos, principalmente das vastas classes médias, o renascimento de projetos de desbloqueio do desenvolvimento com ordem serão quase inevitáveis, e, se não forem encabeçados pelas instituições republicanas tradicionais, poderão vir a sê-lo por movimentos revolucionários ou contra-revolucionários no futuro.

3) Por que os partidos políticos vivem hoje uma crise de identidade?

A crise deriva exatamente do insucesso das esquerdas em aplicar seus programas políticos prévios, que iam muito além da mera estabilização monetária. A razão disto, para além da dinâmica própria da nossa democracia "fisiológica", está no fato de que as antigas bases da esquerda (classe média intelectualizada e setores sindicais idem) perderam força e espaço na arena social, se tornando cada vez mais dependentes do Estado para a própria sobrevivência física ou política.

Em contraste, as massas emergentes e a nova juventude estudantil se mostram, até aqui, desinteressadas pela política ou muito mais interessadas na própria reprodução econômica, dado o elevado grau de insegurança vivido. Isto deu aos chefes partidários dos partidos de esquerda no poder uma enorme margem de manobra para flexibilizarem seus programas e condutas, até o ponto revelado em 2005 pelo "mensalão".

Pela direita, a crise é mais simplória: diz respeito ao fato de que, tradicionalmente, as classes economicamente dominantes não precisarem de seus partidos históricos para fazer o jogo do poder, bastando inundar os cofres das campanhas partidárias dos partidos fortes - entre eles, PT e PSDB - para conseguir seus objetivos imediatos.

Desta forma, os partidos de direita podem minguar na exata proporção em que os de esquerda e centro-esquerda são cooptados, pelos dutos da arrecadação financeira, sem que isto ponha em risco, no curto-prazo, os interesses destas classes dominantes.

4) Qual a importância da Conferência Caio Prado Júnior, realizada para discutir a esquerda democrática e um projeto para o Brasil?

A importância está em tentar reagrupar a esquerda e o centro não-populistas para fazer frente ao desmanche em curso da democracia, partindo para a ação política radical contra o Estado patrimonialista que nos oprime.

O objetivo estratégico deve ser o de conscientizar os trabalhadores, de todas as rendas, de que o projeto populista de poder se resume a uma redistribuição de renda às expensas dos estratos médios e altos dos assalariados, enquanto as classes políticas no poder simplesmente enriquecem.

Ademais, é preciso mostrar que o atual modelo de substituição de produção por importação tende, no médio e longo-prazo, a reduzir as oportunidades e agravar a situação geral, tornando ainda mais influente o poder de sedução das máfias e gangues que infestam o país, bem como nosso ainda elevado grau de dependência tecnológica e econômica frente aos países desenvolvidos.

Num segundo momento, estes mesmos trabalhadores, enquanto consumidores, devem ser esclarecidos de que, mesmo que consigam certa estabilidade ou pequena melhora em suas rendas, por conta da baixa inflação, não terão melhoras efetivas em suas condições de vidas em função da degradação acelerada do ambiente social e da má qualidade dos serviços públicos, que muitos ainda são ou serão obrigados a utilizar.

É preciso abrir o PPS - ou qualquer outra organização que daí se produza - para a sociedade, inventando novos métodos de organização em rede e rompendo com o modo tradicional de fazer política, centrado exclusivamente nos interesses eleitorais dos parlamentares.

Em particular, é preciso produzir materiais didáticos (inclusive jornais) e eventos político-culturais (festivais) capazes de aglutinar o público potencialmente receptivo a estas idéias e fazê-los interagir na ótica realista dos simples e não na ótica conveniente dos chefes.

Por seu caráter radical, não obstante democrático, tal movimento deve procurar interagir fortemente com as forças de esquerda ortodoxas de modo a construir parcerias eleitorais capazes de furar o bloqueio do consenso populista no poder.

5) O PT, considerado o maior partido da esquerda no Brasil, construiu uma ampla aliança partidária para exercer o poder e se viu envolvido em denúncias de corrupção e escândalos. Estes fatos podem trazer alguma consequência para os partidos de esquerda hoje e no futuro?

Certamente. A esquerda está completamente desorientada. Um dos subprodutos mais deletérios do adesismo petista ao sistema foi o "desarmamento" quase total da sociedade civil organizada, que, na atual conjuntura, perdeu completamente a iniciativa em termos da crítica social - exceção feita àqueles movimentos semeados pela Igreja progressista, que ainda guardam uma relativa autonomia organizativa.

A cooptação geral das lideranças políticas, via corrupção e promoção de status, é uma fórmula conservadora de grande eficácia histórica, com a qual as classes dominantes lubrificam e renovam suas relações de poder.

O PT, ao se render a ela, não apenas desmoralizou a esquerda como ainda reforçou na população o ceticismo e o cinismo em relação à política, reiterando a idéia, historicamente tão forte entre nós, de que o arreglo por debaixo do pano é a única ética viável para a sobrevivência Brasil.

Do ponto de vista simbólico, zeramos todo o desgaste da direita com a crise do Regime de 64. Abundam na internet mensagens da extrema-direita associando todas as taras do nosso processo político ao descalabro ético do lulismo (outrora imputadas à "República Sindicalista").

Desde 2006, com a reeleição de LILS, a esquerda voltou a ser identificada com o populismo - tal como nos anos 1960 - e atacada por semear a "desorientação da família e a insegurança do jovem". Também a mobilização popular deixou de ser uma preocupação da esquerda fora dos momentos eleitorais, e é uma questão de tempo para que volte a ser um trunfo da direita radical.

A própria classe média intelectualizada, que protagonizou tantas lutas nacionalistas, democráticas e corporativas até os anos 1990, agora luta para tentar manter o padrão de vida que lhe possibilitou esta autonomia e liberdade contestatória, sofrendo profundamente com a desorientação reinante e cada vez mais dependente de cargos públicos - seja por concurso, seja por confiança.

Não fosse a força contratante do Estado brasileiro e este importante segmento social estaria hoje à mercê da extrema-direita, como parece estar acontecendo com os estratos menos escolarizados dela, já sob a influência de milícias paramilitares no Rio de Janeiro.

Quanto às massas mais precarizadas, que tentam se salvar da barbárie por meio das migalhas que o Estado e o crime lhes concedem, o quadro também pode evoluir na mesma direção à medida que cessarem suas esperanças e agudizarem-se as condições de opressão pelas gangues das drogas.

6) As políticas assistenciais do governo Lula, que tem o Bolsa-Família como carro-chefe, são eficazes no combate à pobreza e à miséria? Essas medidas podem ser consideradas políticas de esquerda? Por que?

As políticas assistenciais cabem em qualquer governo com preocupações sociais, de direita ou esquerda, com as devidas diferenciações, mas elas, por si só, não são capazes de reverter os quadros sociais de desigualdade aguda, sendo antes instrumentos emergencias para se ganhar tempo enquanto as soluções amadureçam.

No entanto, é preciso substantivá-las com políticas econômicas inclusivas, objetivando o pleno emprego e o crescimento acelerado e sustentável do PIB e da renda per capita.

Um governo verdadeiramente de esquerda teria que administrar a inflação, os juros e o câmbio, de forma compatível com a inclusão acelerada dos trabalhadores no mercado de trabalho e o fortalecimento de nosso parque industrial, rompendo com a política atual de maximização da renda disponível através da fantasia cambial e dos incrementos assistenciais à perder de vista.

Tal política precisa ser afirmativamente globalizante ao mesmo tempo que ativamente nacionalizante, inclusive para alcançar um grau razoável de autonomia tecnológica e econômica que nos projete como nação desenvolvida, com alto nível de bem-estar social e de integração global, tal como ocorreu com o Japão nos anos 1960-70, os tigres asiáticos nos 1980-90 e com a China desde 1990.

O atual modelo, de baixa inflação com inclusão assistencialista, é mais próprio da tradição liberal, e seu sucesso vem dependendo da cooptação ativa das elites populistas e da sensação passageira de riqueza proporcionado pelo crescimento econômico mundial e seu excesso de capitais, que inundam as periferias do mundo capitalista em busca de uma remuneração meramente especulativa.

Os dias de glória desta política, inaugurada por FHC, podem estar contados tanto pela crise mundial em torno da questão nuclear do Irã e da Coréia do Norte - que faria com que os capitais refluíssem às suas matrizes desvalorizando o câmbio -, quanto pela exasperação da crise interna de segurança - que poderia abalar a governabilidade do sistema por meio de reações sociais em cadeia.

7) A reforma política que se discute no Congresso propõe mudanças pontuais, como maior rigor na fidelidade partidária, introdução de listas partidárias fechadas nas eleições, financiamento público de campanha, cláusula de barreira etc., além de colocar em debate temas como o voto distrital e o parlamentarismo. Qual a sua opinião sobre a reforma?

A reforma é urgente para tentar dar um mínimo de racionalidade ao putrefato sistema político vigente. Sem comando partidário, quem garante a fidelidade do parlamentar ao programa eleitoral?

A identificação política do povo com seus líderes precisa da mediação partidária de forma a contrabalançar o personalismo e os desvios de conduta, garantindo algum mecanismo de representatividade no parlamento.

Veja o caso do PSDB: o pragmatismo de Serra e de Aécio na disputa pelos recursos federais para seus respectivos estados, direcionando o voto de suas bancadas federais para os interesses do PT, só é possível dada a nulidade da direção partidária tucana.

Quem comanda as bancadas federais dos partidos não são suas direções, mas os governadores - até mesmo os de outro partido. Diante disto, não é de se espantar que até o Presidente do PSDB tenha entrado na fila para negociar seus interesses orçamentários por cima da expresa vontade do eleitorado, que, em dois turnos, repudiou os "aloprados" do PT votando em Alckmin, em seus senadores e deputadores federais.

Uma democracia sem partidos organizados de cima à baixo, tende a ser dirigida pela coalizão no poder, sob os auspícios dos grupos econômicos e ideológicos (midiático) dominantes na sociedade, em detrimento da proporcionalidade expressa nas urnas.

Esta é a parte institucional da receita do nosso simulacro democrático, que simplesmente camufla o dirigismo dos setores dominantes sobre o Estado em detrimento do restante da sociedade, fenômeno de resto explicitado pela pesada carga tibutária, cobrada de maneira regressiva para sustentar privilégios previdenciários de castas privilegiadas e encargos financeiros ditados pelos barões do sistema bancário, tudo isto em meio à oferta de péssimos serviços públicos ao povo.

No longo-prazo, o acúmulo insuportável desta opressão tende a tornar o custo de oportunidade de novos ciclos autoritários dramaticamente menor do que o custo crescente da inércia e do caos.


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