Nunca mais na história deste país o pícaro e o trágico deverão apresentar-se em nome da esquerdaNunca antes na história deste país se elegera um presidente de origem operária e nunca antes tantas forças de esquerda tinham conseguido chegar ao Palácio do Planalto.
Nunca antes na história deste país um candidato de origem popular participara de cinco eleições presidenciais, colhera três derrotas consecutivas e duas vitórias seguidas, contabilizando tantos milhões de votos.
Nunca antes na história deste país um partido de esquerda - o Partido dos Trabalhadores - tivera tanta chance e legitimidade para começar a desmontar as sólidas engrenagens da tragédia brasileira e nunca defendera tanto as mudanças sociais e políticas dotadas de valores éticos e morais que travassem e obstassem a corrupção do Estado patrimonial brasileiro.
Nunca antes na história deste país um presidente da República fora tanto a imagem e a semelhança do povo brasileiro.
Nunca antes na história deste país um partido de esquerda (no governo) implementara uma política tão assistencialista - que nem sequer arranhou o verniz da nossa barbárie - e tão rapidamente se convertera em partido da ordem.
Nunca antes na história deste país uma liderança política de origem operária e sindical sofrera um transformismo tão acentuado, que lhe desfigurou a própria alma.
Nunca antes na história deste país o dito virou não dito. A antiga e bravia oposição virara tão serviçal situação e fora tão pateticamente tragada pela corrupção. O velho e moderado PCB saiu muito mais íntegro na longa história do chamado Partidão.
Nunca antes na história deste país um governo e o comando de seu partido -que nasceu e se definia como sendo de esquerda- tinham arquitetado um projeto de corrupção do tamanho do mensalão. Até então, esse era um atributo próprio das direitas.
Nunca antes na história deste país um presidente tão personalista e centralizador, tendo seu entorno mergulhado num lamaçal -ou pântano-, alegara tão singelo desconhecimento do que se passava na ante-sala de seu gabinete, mesmo sabendo que ele sempre tivera o controle pleno de tudo o que se decidia na cúpula de seu partido.
Nunca antes na história deste país um governo de "esquerda" fora tão generoso com os lucros dos bancos e dos grandes capitais, tão camarada com os usineiros e por demais cordial com o agronegócios.
Nunca antes na história deste país um governo que se originara de um partido de esquerda e de oposição erigira um modelo econômico reiteradamente elogiado pelo FMI e fora tão bom seguidor das políticas gestadas nos estranhos laboratórios do Banco Mundial.
Nunca antes na história deste país o governo reduzira, em tão pouco tempo, o escandaloso número de miseráveis. Mas também nunca se aceitara que a mensuração da miséria brasileira estivesse próxima do patamar abjeto de R$ 125 per capita, menos de um terço do minguado e arrochado salário mínimo do outrora denunciador do "arrocho salarial".
Nunca antes na história deste país um presidente, cuja liderança nasceu nas autênticas lutas sociais e políticas de oposição, ficara tão amigo do bárbaro presidente norte-americano e tivera tanta coragem de dizer que "nunca foi de esquerda".
Nunca antes na história deste país um presidente da República, em meio a tanta mudez, falara tão diretamente com o povo. Algo próximo ocorrera somente com o velho Getúlio, em longo período, ou com o estranho e bizarro Jânio, em breve tempo. Ou ainda com o patético Collor, de modo quase relâmpago.
Nunca antes na história deste país se tornaram tão acentuadas a falência e a degradação do poder parlamentar.
Nunca mais na história deste país o pícaro e o trágico deverão apresentar-se em nome da esquerda, na face mais visível de um governo cujo principal partido que o sustenta se originara em tantas e autênticas lutas sociais e políticas.
* RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 54, é professor titular de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e autor, entre outros livros, de "Uma Esquerda fora do Lugar".