Não há no Brasil ninguém, em sã consciência e com algum poder de se indignar diante da miséria, do atraso, da desigualdade e da falta de dignidade, que em certo momento da vida não tenha simpatizado ou mesmo votado no Partido dos Trabalhadores.
Seja na emblemática eleição de Lula contra Collor em 1989, seja em São Paulo na polarização entre Suplicy (primeiro Eduardo, depois Marta) e Paulo Maluf, não havia como escapar: o "novo" era o PT. Mas o novo envelheceu. Veio o poder e com ele os escândalos, as ações e omissões de um partido que tanto fez para ser diferente que acabou se igualando e até superando todos os demais naquilo que tinham de pior.
Agora vem a discussão sobre a fidelidade partidária. Será que a vereadora Soninha Francine foi infiel ao sair do PT? Ou a traição foi do partido, que abandonou as velhas bandeiras, princípios, posturas e ideais e se bandeou para o lado dos antigos adversários?
Soninha tem dado as suas explicações desde que deixou o PT, há um mês. Mas outras figuras expressivas da política já deixaram antes o Partido dos Trabalhadores. O que elas disseram? O que estes políticos, todos respeitados por sua ética, coerência e espírito público, têm em comum?
Engraçado que o primeiro rompimento estrondoso foi o da ex-prefeita Luiza Erundina, atacada ferozmente pelos petistas justamente por defender uma política de alianças (no governo Itamar Franco, após o impeachment de Collor). O mais recente, de Soninha, também traz a marca da intransigência petista: ela é criticada até por ter assistido a jogos do Palmeiras ao lado do governador tucano José Serra.
Mas o caso de Soninha traz mais um agravante, que é o oposto do que o PT sempre defendeu: "Saio porque acho que algumas de nossas inclinações, hoje, são muito diferentes. Onde o partido já foi até intransigente, ficou muito concessivo. Onde eu acho que é o caso de negociar, o PT se recusa. Quem conviveu comigo nesse tempo de mandato sabe das nossas divergências - naturais, inevitáveis, mas talvez predominantes hoje em dia."
"Enquanto estava no partido, sempre fiz ou concordei em público com várias críticas feitas a ele. Política de alianças sem qualquer consistência ideológica e programática, posicionamentos esquisitos no plenário da Câmara, política macroeconômica que não condiz com o que sempre defendemos, perseguição ou virtual abandono a colegas mais críticos e ´independentes´ etc.", diz a vereadora do PPS.
Soninha afirma que saiu do PT por "divergências acumuladas e persistentes e algumas questões programáticas, como o fato de o governo do PT ter como aliados pessoas que não têm nada a ver com aquilo que, em tese, o partido defende".
"Os ´coronéis´ de sempre", aponta Soninha. "E, pelas sinalizações até aqui, o partido pretende manter essa orientação".
Luiza Erundina, deputada
"A saída do PT foi a decisão mais difícil da minha vida. Fiquei 17 anos no PT, sou uma das fundadoras do PT, nunca fui de outro partido. Eu me formei no PT e sou devedora do PT. Mas em dado momento percebi, até por conta da minha experiência na Prefeitura de São Paulo, que algumas coisas tinham que mudar. Nós não podíamos nos manter fechados, intransigentes. Quando decidimos ir ao governo Itamar Franco, desrespeitando uma decisão do partido — porque eu dizia que se havíamos ajudado a derrubar o Collor, nós tínhamos a obrigação de ajudar o país —, minha vida no PT foi ficando insuportável. Eu fiquei um ano numa crise quase existencial. Até cheguei a pensar em sair da política e continuar no PT. Por outro lado, entendia que ainda tinha uma vida útil, muita energia, uma experiência acumulada. Também entendi que o partido não é o fim, mas o meio. Sem nenhuma crítica ao partido, mudei de casa mas não mudei de rua. Eu continuo no campo do socialismo e de esquerda. Não fiz nenhuma concessão."
Cristovam Buarque, senador
"Eu saí do PT porque vi que o partido já não era mais um partido de mudança, que não tinha mais vigor transformador."
"Eu não mudei. O PT que mudou. Eu acho que vai ser difícil para ele (Lula). Porque ele mudou de posição. Minhas posições são as mesmas."
"Eu só saí do PT porque eu vi que o PT não vai ter tempo de pensar o Brasil. Pelos próximos cinco a dez anos, o PT só vai ter tempo de pensar o próprio PT. É um partido sem projeto para o Brasil, porque está procurando um projeto para o próprio partido. Não saí porque o PT é um partido corrupto. A imensa maioria da militância petista é de gente honesta. Mas gente decente que vai ficar cinco a dez anos voltada para dentro. E o Brasil não tem tempo de esperar que daqui a dez anos o Brasil volte como um grande partido."
Chico de Oliveira, sociólogo
"Tenho o direito de cobrar do Partido dos Trabalhadores pelo governo que ele realiza, pela minha condição de militante e de cidadão. E, daqui por diante, exclusivamente pela minha condição de cidadão. Pois muito além do que imagina e pensa a direção partidária, o PT tem que dar satisfações à cidadania, que lhe deu as condições para disputar democraticamente e chegar ao governo. Falta a essa liderança consciência democrática e republicana, enquanto lhe sobram arrogância, prepotência e maneirismos caboclos de péssima fatura."
"Não confio mais nos dirigentes do partido --os que estão no governo e os que permanecem nas instâncias partidárias. Sequer suponho que esse todo seja homogêneo."
"Afasto-me porque não votei no Partido dos Trabalhadores para vê-lo governando com um programa que não foi apresentado aos eleitores. Nem o presidente nem muitos dos que estão nos ministérios nem outros que se elegeram para a Câmara dos Deputados e para o Senado da República pediram meu voto para conduzir uma política econômica desastrosa, uma reforma da Previdência anti-trabalhador e pró-sistema financeiro, uma reforma tributária mofina e oligarquizada, uma campanha de descrédito e desmoralização do funcionalismo público, uma inversão de valores republicanos em benefício do ideal liberal do êxito a qualquer preço, uma política de alianças descaracterizadora, uma ´caça às bruxas´ anacrônica e ressuscitadora das piores práticas stalinistas, um conjunto de políticas que fingem ser sociais quando são apenas funcionalização da pobreza."
Heloísa Helena, ex-senadora
"Vou usar toda a minha capacidade de luta e de trabalho para, entre outras coisas, ajudar o PT a recordar os nossos entusiasmados discursos de oposição. No dia em que, para estar na política, eu precisar me sentar à mesa com ladrões tolerados, daqueles que praticam tudo o que está no Código Penal e, mesmo assim, são recebidos com sorrisos e fanfarra nos salões da high society, vou comer giz na sala de aula. Volto, feliz, a lecionar na Universidade Federal de Alagoas. Para mim, é quente ou frio. Morno, eu vomito."
"A minha relação de amor e de identidade não é com a sigla. É com um projeto que, ao longo da história, foi representado por essa sigla. Quando ela não mais representar isso, por mais que eu chore abraçada com a estrela do PT, com aquilo que para mim vai ser memória, eu saio."
"Não acredito que o que está acontecendo seja culpa de Lula, não é uma questão de malevolência individual. O que está havendo é uma inaceitável demonstração de fraqueza do partido, de não se apropriar de um momento tão belo para viabilizar as mudanças profundas de que o Brasil precisa e que o PT prometeu em seu programa. É muito triste dizer isso, mas eu acho que o medo venceu a esperança."
"Tem gente que diz que estou pregando sozinha no deserto. Eu sei que não estou. Mas, mesmo que estivesse acompanhada de mim mesma, eu estaria em boa companhia."
Fernando Gabeira, deputado
"Intelectualmente, tinha visão da precariedade do Estado e das circunstâncias em que nos movemos. O domínio da política pela economia, a transformação dos governantes em administradores do caos vem do próprio processo de globalização. Observei o meu espaço aqui deste Parlamento em comparação com as Bolsas de Valores. As Bolsas de Valores são espaços onde as pessoas gritam e às vezes têm um psicologia diorda. No entanto, as bolsas de valores passaram a prevalecer sobre as decisões que tomamos no Parlamento, a irracionalidade prevalece sobre a racionalidade, e nós os políticos passamos a ser funcionários do grande capital tentando aplacar os seus sustos, as suas neuroses e os seus medos."
"Ora, não era esse o caminho que eu queria trilhar, existe autonomia da política, existem políticos do século passado com visão de conjunto, visão de longo alcance e aplicam essa visão de longo alcance em cada circunstância do seu cotidiano, mas quando se transforma em um Governo apenas que gera os interesses do grande capital, os problemas da Bolsa de Valores e correlatos, quando se transforma nisso, perdemos a visão do futuro. Administrar o quotidiano e, ao administrá-lo, passamos a preocupar-nos apenas com as eleições e estar no Governo, mas a nossa geração não pode se contentar com estar no Governo, nem pode dizer que quer continuar no Governo, ela deve dizer por que está no Governo, o que estamos fazendo no Governo, o que queremos do Governo. Isso, infelizmente não foi feito."
"Na verdade, eu poderia ter percebido isso. Mas eu me deixei também me levar pelo entusiasmo popular e pelo meu entusiasmo. Eu achei que havia uma saída no Estado. Mas eu sabia eu o Estado está em frangalhos, eu sabia que o grande capital nos deixou uma margem mínima de atuação, mas achava que era possível criar. Hoje eu não digo claramente para todos que meu sonho acabou. Não é isso. Eu digo claramente que sonhei um sonho errado. O sonho errado foi confiar que nós podíamos fazer tudo aquilo que nós prometíamos rapidamente, confiar que poderíamos fazer tudo aquilo num período de 4 anos ou imediatamente. Não. O sonho foi pior ainda: foi confiar que era possível transformar o Brasil a partir do Estado; foi não compreender que o Estado já perdeu o dinamismo e que o dinamismo agora se encontra na sociedade. Se o Brasil vai se transformar, vai se transformar através da sociedade. A sociedade é que vai impor os caminhos e o Estado virá - que bom que venha - talvez cansado, talvez lento, mas virá acompanhando nosso caminho."
"Eu quero dizer que até hoje, até a poucos dias passados eu fiquei muito triste porque eu passei a partilhar desse erro da sociedade brasileira que era esperar um Governo salvador e ficar triste, amargurado porque o Governo salvador não nos salvava, o Governo salvador não tomava as medidas que nós esperávamos. Aí eu recuperei a minha alegria quando disse: ´Não, vou sair e vou buscar os meus caminhos´. E com isso abri uma ampla clareira, pude respirar pela primeira vez e estou respirando muito saindo desse clima sufocante das esperanças negadas."
"Quando entrei no PT ou trabalhei com os verdes para se unirem aos trabalhadores, raciocinava ainda com um quadro europeu. Eu pensava que o PT poderia desempenhar nesse processo um papel que a Social Democracia Européia julgou, mas agora, quando o PT chega ao Governo, vejo que a perspectiva dos dirigentes é parecida com a dos dirigentes também comunistas do Leste Europeu, uma visão de produtivismo estreita, sem a compreensão das variáveis ambientais. Então, a sucessão desses desencontros entre mim e muitos companheiros do Governo, foi me levando a compreensão de que realmente essa experiência da Esquerda só poderia ser bem classificada numa frase do meu querido companheiro e eleitor Cazuza: é um museu de grandes novidades."