SÓCRATES e GUSTAVO VIEIRA DE OLIVEIRA *
Não se tem dúvida do êxtase que será uma Copa no Brasil. Festa e futebol é uma combinação perfeita para nós, brasileiros.
É o que temos de melhor para mostrar ao mundo. Porém, ao observar esse grande evento no seu entorno, de forma mais profunda, percebe-se a distância que nos separa das condições e do merecimento para recebê-lo.
O futebol é fenômeno social, parte fundamental da cultura do país, inegável elemento de identidade nacional e extremamente simbólico. O futebol brasileiro (dentro e fora de campo) muito diz sobre o que somos, nossos valores, a dinâmica social e as relações de poder. É uma mostra didática do que é o Brasil. A Copa não deve ser analisada sob ótica diferente.
A falta de condições salta aos olhos nos primeiros movimentos realizados rumo à indicação e, a partir de agora, à organização desse megaevento. Ao verificar as lideranças que ameaçam tomar frente do processo, é possível antecipar o futuro de apropriação do bem coletivo, da personificação maliciosa da obra social difusa, da preponderância de interesses indignos e ilegítimos em benefício de si mesmos, de seu pequeno grupo e na defesa do podereco que eterniza essas práticas no futebol (e no país).
O comitê organizador da Copa 2014 é o melhor retrato (conforme informação desta Folha): uma só pessoa, que tudo pode e a ninguém presta satisfação e contas. Um déspota! Mas não devemos nos preocupar.
Qualquer evento esportivo acontece por si só. É só a bola rolar que as atenções se direcionam para o campo e esses "requintes" se esvaem e depois são esquecidos com a avalanche de informações direcionadas -especialmente as veiculadas pelo império midiático, onipresente e onipotente no futebol, que tem papel fundamental no atraso das instituições esportivas. Sempre foi assim no Brasil, não é?
O que interesseiramente ignoram e querem que ignoremos é o potencial mobilizador e de transformação social desse fenômeno jogado com os pés. Essa é a legítima função do futebol, a qual, se aflorasse, não encontraria limites para transformar realidades, integrar culturas e pessoas, formar cidadãos e consciências, enfim, servir de vetor do desenvolvimento e da igualdade social.
Essa é o entendimento fundamental que nos falta, a essência que daria sentido a uma Copa no Brasil e que, com esses valores, por beneficiar a todos (benefício verdadeiro, não apenas a felicidade fugaz por assistir a alguns jogos), nos faria, com muito orgulho, merecer tal evento.
Nem mesmo se pode afirmar que há condições para as melhorias dos equipamentos urbanos, conseqüência do fato de sediar um evento dessa magnitude. É o que se verifica com a experiência do Pan. Apesar de inúmeras promessas de legados fantásticos e benfeitorias maravilhosas, passada a competição, pouco se verifica de melhoria na vida cotidiana do carioca.
O que se viu foi uma imensidão de recursos públicos investidos de forma nada transparente, usados, em sua maioria, para maquiar ações sociais provisórias e, portanto, ineficientes, melhorias urbanas não prioritárias e para construir praças esportivas que servem aos mesmos citados anteriormente, seja em forma de concessões à exploração privada a preços ridículos, seja para um efêmero "circo sem pão" esportivo que sustenta esse podereco.
Nesse cenário, o mais cruel é perceber que o único que merece vivenciar uma Copa do Mundo, devido à paixão delirante dedicada ao futebol, pela intensidade com que esse esporte é parte de sua cultura e identidade, é aquele que, também por tudo isso, não é estimulado a discernir sobre a manipulação de sua paixão e a enxergar essa realidade -ou seja, o torcedor e o povo brasileiro.
Sob esses aspectos, com uma visão mais profunda e complexa, que insere a Copa do Mundo e o próprio futebol dentro do contexto social e político, driblando a idéia e o poder dos contrários, enfim, por ir além da festa e do futebol, mesmo que sufocando o torcedor dentro de nós, não vemos condições de o Brasil sediar um evento com tal magnitude e simbolismo e, ao mesmo tempo, proporcionar transformações na realidade social do nosso país, que é o que a nós (sonhadores de um Brasil mais humano e justo) interessa.
* SÓCRATES BRASILEIRO SAMPAIO DE SOUZA VIEIRA DE OLIVEIRA, 53, é médico e ex-jogador de futebol (Copas do Mundo de 82 e 86).
* GUSTAVO CECILIO VIEIRA DE OLIVEIRA, 30, é advogado, especializado em administração esportiva pela FGV.
(artigo publicado na Folha de S. Paulo de 3/11)