Fundadora e presidente da ONG Mães da Sé, Ivanise Esperidião da Silva Santos é a mais recente militante e filiada do PPS de São Paulo.
Com um discurso emocionado e comovente durante o encontro dos diretórios zonais da região Oeste e do Centro Expandido, realizado no sábado, 17 de setembro, Ivanise contou um pouco da sua vida e da sua luta.
A ONG Mães da Sé nasceu há 15 anos, quando a filha adolescente de Ivanise (Fabiana, aos 13 anos) desapareceu. Atualmente, a organização conta com cerca de 10 mil associados de todo o Brasil e já foi a responsável por localizar 2.566 pessoas desaparecidas.
A entidade presta atendimento às famílias que tiveram um parente desaparecido, assessoria jurídica quando necessário, apoio psicológico e ainda faz o encaminhamento das pessoas para a Delegacia de Pessoas Desaparecidas, com quem tem parceria.
Leia a íntegra do depoimento:
Nunca fui uma pessoa privilegiada. Filha de agricultores, trabalhei na roça até os 18 anos, quando me casei e vim morar nessa megalópole.
Confesso que quando cheguei aqui em 12 de junho de 1980 me assustei, afinal tinha saído de uma cidade muito pequena, chamada São Luiz do Quitunde, que fica a 54 km de Maceió, Alagoas, e hoje tem 30 mil habitantes.
Deixei para trás meus pais e nove irmãos. Isso para mim foi muito difícil, por isso pensei logo em engravidar e ter minhas filhas para me fazerem companhia. Sempre pensei comigo mesma que tudo aquilo que não tive na minha infância eu daria para elas, pois como a minha família era muito grande, meus pais não tinham condições de nos dar conforto. Afinal, com 10 filhas para sustentar...
Com o salário que o pai das minhas filhas ganhava, como motorista de ônibus, nunca deixou faltar nada para elas. Optei por ter só duas filhas, porque sempre achei que quando decidimos ter filhos, temos a obrigação de dar o melhor. Ter filhos é a maior benção que Deus nos deu. Acredito que Ele foi muito sábio e generoso quando escolheu a nós, mulheres, e nos deu a dádiva de ser Mãe.
Fabiana, desaparecida aos 13 anos
Na minha concepção de felicidade, eu tinha uma família feliz. Até que em 23 de dezembro de 1995, minha filha Fabiana saiu de casa, acompanhada de uma amiguinha que estudava junto com ela para visitar outra amiga, que fazia aniversário naquele dia. Mas no retorno para casa ela desapareceu, a cerca de 120 metros de distância da casa onde morávamos.
A partir daí, minha vida se transformou em um pesadelo, em uma busca sem fim. Durante três meses procurei a minha filha sozinha, por essa imensa cidade, visitando hospitais, IMLs, hospitais psiquiátricos e pelas ruas e viadutos, principalmente na região central.
Essa busca foi me desgastando fisicamente e psicologicamente. Cheguei à beira da loucura. A vida não tinha mais sentido para mim sem minha filha, até que um dia, num momento de desespero e muita dor, pedi ao Senhor Jesus que me mostrasse uma forma de poder esperar até o momento em que Ele achasse que eu estava preparada para encontrar minha filha, viva ou morta.
Por um acaso, uma amiga de faculdade me ligou, passou o telefone de uma organização que tinha no Rio de Janeiro, o Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente, onde cadastrei o desaparecimento da minha filha.
Novela "Explode Coração"
Algumas semanas depois, fui convidada a participar da novela "Explode Coração", da Rede Globo, que juntou a ficção e a realidade, mostrando depoimentos de mães que tinham filhos desaparecidos.
Durante as gravações, conheci outras mães que estavam passando pelo mesmo drama que eu. Juntamente com outra mãe que foi comigo gravar a novela, demos início ao Movimento Mães da Sé, que nasceu no dia 31 de março de 1996.
No começo desse trabalho, os meios de comunicação e as empresas divulgavam fotos de crianças desaparecidas em diversos lugares. Fizemos grandes campanhas em algumas emissoras de TV e os resultados eram instantâneos. Com o passar do tempo, a imprensa só noticia quando acontece um caso extraordinário. Ou seja, quando a vítima é de uma classe social elevada, ou tem parentesco ou é amigo de alguém muito influente.
Diferença de classes
Posso citar um caso que repercutiu bastante no ano passado e até hoje se comenta, que foi o caso da advogada Mércia Nakashima, onde a polícia se mostrou muito empenhada. Em 19 dias o caso foi solucionado. É lógico que com a ajuda da família e amigos da vítima, pois o corpo foi localizado pela família com auxílio dos Bombeiros.
Quando receberam a denúncia anônima e falaram para o delegado responsável pelo caso, ele achou que era um trote. A família não se conformou. Foram até o local e encontraram o carro e o corpo da vítima.
Infelizmente não é o que acontece com as famílias de classe social mais baixa. A grande maioria não tem nem sequer dinheiro para pagar a passagem do ônibus ou do trem.
Como mães que tenho cadastradas na Associação, que quando chegam na delegacia para registrar a queixa do desaparecimento dos seus filhos, são tratadas com o mais profundo descaso.
Temos um caso que a vítima foi assassinada no mesmo dia do seu desaparecimento e o corpo foi encontrado um dia depois. Mas a família só ficou sabendo cinco anos e meio mais tarde, isso porque pedi para o pai ir até a delegacia requerer pesquisa de cadáver.
O policial entregou o laudo, que havia chegado há mais de cinco anos, e a família simplesmente não foi avisada. Nesse caso específico, há fortes indícios que a vítima foi usada para o tráfico de órgãos.
Descaso do Estado
Há 14 anos eu esperava para fazer um exame de DNA de um corpo que foi encontrado na região de Campinas, em 1º de janeiro de 1996, nas margens do Rio Capivari. Em agosto do mesmo ano fui chamada na Delegacia de Desaparecidos para tentar identificar aquele corpo como sendo de minha filha.
Não achei nada que pudesse comprovar que aquele cadáver era minha filha, até porque não tinha fotos do rosto e o corpo foi encontrado em estado de decomposição. Havia dois laudos diferentes, onde as informações eram um pouco confusas. Então pedi o exame de DNA, já que a minha filha não tinha carteira de identidade.
Durante 14 anos fiquei esperando por esse exame. Até que, no final de 2009, pedi ajuda ao Delegado Itagiba Franco, que prontamente se manifestou, tomando as devidas providências. Mas para minha infelicidade ele constatou que o material genético daquele corpo foi extraviado.
Ou seja, não dava mais para fazer o exame. E a justificativa do cemitério é que eles têm capacidade para enterrar mil corpos sem identificação. Que durante três anos aquele corpo fica enterrado, depois os ossos são retirados e levados para o ossário, que é um poço sujo, sem qualquer identificação.
Com isso, fica inviável identificar qualquer ossada. Isso, para mim, é o mais profundo descaso. Desrespeito pela dor de uma mãe que há 15 anos procura por uma resposta, porque se aquele cadáver não for da minha filha, tem uma mãe assim como eu à procura de uma filha que nunca mais vai encontrá-la.
Crianças viram apenas números
Para a polícia, nossos filhos são apenas números. Eles fazem parte de uma estatística de 20.000 por ano, só no Estado de São Paulo. A nível nacional não se sabe com exatidão. É vergonhoso viver num país onde vidas são tratadas com tanto descaso. A não ser que a família tenha uma condição social elevada, aí a coisa muda de figura.
E de quem é a responsabilidade? É de um Estado omisso e negligente, que não investe em Segurança Pública e não capacita seus policiais para tratar com dignidade e respeito as famílias que passam pela dor da perda de seus filhos, dando a elas amparo social, psicológico, legal e até financeiro, pois muitas mães, com a perda de seus filhos, perdem o emprego, a saúde, a auto-estima. O desaparecimento causa depressão, hipertensão, problemas cardíacos, entre outras sequelas.
Em 15 anos de lutas no Movimento Mães da Sé, já perdemos oito mães e dois pais, porque o desaparecimento deixa sequelas irreparáveis para as famílias que passam por essa dor.
Irmanados na dor
Eu transformei a minha dor em uma luta constante, não apenas pela minha filha, mas para ajudar outras mães que vivem o mesmo drama que eu. Tenho aprendido muito com essa família nova e numerosa que Deus me deu. Somos irmanados pelo mesmo objetivo, que é encontrar nossos filhos, afinal o Estado nos deve essa resposta. Nossa luta é uma luta isolada, onde temos o total abandono do Poder Público.
Aprendi a não desistir nunca, pois como mãe não posso desistir do bem mais precioso que Deus me deu. Tenho travado uma longa e triste batalha com a vida, mas aprendi também que "não existe causa perdida, pois a única causa perdida é aquela que você abandona".
Não encontrei ainda a minha Fabiana, mas já devolvi a alegria para 2.566 famílias de casos localizados com vida. Se eu morrer hoje, morro em paz, pois minha filha vive em cada uma dessas pessoas, sejam crianças ou adultos, que devolvi para suas famílias.
Ao longo desses 15 anos de luta, aprendi que é enfrentando as dificuldades que me fortaleço. É superando meus limites que cresço como pessoa. É tentando resolver problemas que amadureço. É desafiando o perigo que encontro coragem para enfrentá-lo, e descubro o quanto cresço quando exigem de mim mais do que as minhas próprias forças, o que muitas vezes está além dos meus limites.
Aprendi a valorizar cada minuto que a vida me dá, pois ele é único. Seja bom ou seja ruim, pois jamais haverá outro igual. Por isso nunca penso naquilo que acabou, mas sim naquilo que valeu a pena enquanto durou.
O resultado desse esquecimento vemos hoje, quando execuções sumárias, torturas e desaparecimentos forçados continuam a ser praticados, em número muito maior e atingindo muito mais pessoas, por agentes estatais. Nos recusamos a mais um esquecimento nessa triste história.
Justiça, dignidade e verdade
Lembrar os 15 anos do Movimento Mães da Sé é, acima de tudo, um ato de continuidade da busca por justiça, dignidade e verdade. A nossa luta não se perdeu no caminho, tampouco é em vão.
De tudo fica um pouco, que será suficiente para tecer o fio da memória que serve para a luta por justiça e contra a violência do Estado. É tempo de lembrar, e fazer da lembrança dos nossos filhos o combustível para a luta que continua até encontrarmos uma resposta.
Há 15 anos iniciamos, dando os primeiros passos, junto com muitas mães, pais, irmãos e amigos que nos seguiram, mostrando que não podemos mais esperar por justiça e deixando tudo por conta do Estado.
O mesmo Estado aliás, que até hoje não resgatou a imensa dívida social com o Brasil, com os milhões de pobres e excluídos que sofrem nessa terra há mais de 500 anos.
A dor integra a natureza do nosso trabalho. É em meio à nossa dor e sofrimento que buscamos e recolhemos a solidariedade e o alento de nossos parceitos em nosso trabalho, que não só alivia nossa caminhada, como amplia nossas vitórias e impõe-nos o compromisso de com eles nos congratularmos, ainda perguntando: "Para onde estão indo nossas crianças?".