segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Fernanda Torres: "Na cabecinha"

Assisto ao noticiário e confirmo: o mundo vai acabar

Terça-feira gorda . Um homem sequestra um ônibus na ponte Rio-Niterói. Numa ação bem calculada da polícia, atiradores de elite o abatem, salvando a vida dos passageiros reféns.

Ao descer do helicóptero que o levou até a cena do crime, o governador Wilson Witzel não contém a euforia e, erguendo os punhos, comemora o desfecho como um torcedor de futebol que vibra diante de um gol.

Uma semana antes, sua política linha-dura de segurança pública, com uso de helicópteros blindados para atirar “na cabecinha” dos bandidos, havia enfrentado duras críticas.

Depois da morte de seis jovens inocentes em confrontos entre a polícia e o tráfico, a ONG Redes da Maré entregou à Justiça 1.500 cartas escritas e ilustradas por crianças da comunidade, pedindo maior racionalidade nas ações policiais.

Witzel reagiu incomodado, pondo a culpa dos óbitos nos defensores dos direitos humanos. E viu, no bem sucedido abate do sequestrador da ponte, uma justificativa para a truculência de sua gestão. Daí a alegria incontida do governador.

Nas declarações sobre o ocorrido, Witzel procurou ser comedido, se solidarizando inclusive com a família do sequestrador, mas a linguagem corporal que exibiu no desembarque não deixa dúvida quanto ao lucro político que pretendia extrair da tragédia.

Qual a razão de elegermos políticos tão bélicos, tão devotos de Deus e da bala, que confundem direitos humanos com ideologia vermelha e prometem sanar o problema social com o extermínio bem aplicado?

A razão é o medo.

Em entrevista ao programa Painel, na GloboNews, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao ser confrontado com o diretor demitido do Inpe, o físico Ricardo Galvão, argumentou que os projetos de exploração da biodiversidade amazônica haviam fracassado e que era hora de buscar alternativas.

As queimadas e o desmatamento vexaminoso pareciam não afetar o ministro, que ressaltava as riquezas intocadas da região, minimizando o valor da ciência, o desmonte do Ibama e os benefícios trazidos pelo Fundo Amazônia.

Witzel e Salles se completam.

Ambos defendem a ideia de que o nhém-nhém-nhém ecológico-humanista da social-democracia faliu, foi para o ralo junto com o demônio encarnado do lulopetismo.

De fato, entra governo sai governo, os problemas de habitação, saneamento, saúde, segurança e educação só se agravam. Cruzado novo, cruzeiro novo, Nova República... O Brasil é o país condenado a começar do zero.

A diferença, agora, é que o desejo de jogar na latrina tudo isso que está aí, vem acompanhado da percepção de catástrofe irrefreável, de fim de mundo, que os atuais governantes parecem querer acelerar. O apocalipse está em voga.

As mudanças climáticas, os verões tórridos, as secas, incêndios e inundações, a miséria crescente, as migrações, o lixo tóxico, as epidemias e a recessão econômica, esse rosário de horrores sem solução breve ou possível, delineia um não futuro onde a morte aos milhões será inevitável.

Tenho vivido assim.

O caixa da farmácia embrulha uma cartela de analgésico num saco plástico gigante, eu recuso o invólucro e penso: o mundo vai acabar. Corro a lagoa respirando escapamentos e concluo: o mundo vai acabar. Dou descarga, como carne, separo o lixo, escovo os dentes, espero o ipê que plantei florescer e sei: o mundo vai acabar. Assisto ao noticiário e confirmo: o mundo vai acabar.

E não é nem preciso que a frente fria vinda do sul se misture com a fuligem das queimadas do norte, transformando em noite a tarde de agosto em São Paulo, para saber que o mundo vai acabar.

Porque até numa manhã de luz, com o verde da mata aceso contra o céu azul da Guanabara, tenho a certeza de que o mundo vai acabar.

O terceiro milênio não cumpriu o esperado. A classe média empobreceu, os empregos foram para o brejo, a tecnologia da rede revelou o pior de nós todos e seguimos escravos do consumo e da queima suja de combustível fóssil. Só uma catástrofe de proporções bíblicas fará parar a engrenagem.

É a angústia, o pânico do porvir, é o medo que se agarra em Deus e elege esse governador que, incapaz de conter o gozo, comemora o tiro, mesmo que devido, de um sniper.

Freud deu nome aos bois logo após a primeira das duas grandes guerras mundiais que teve a infelicidade de testemunhar. Essa ânsia de fim se chama pulsão de morte.

Só tem dado ela nas urnas eleitorais do planeta.

Fernanda Torres, é atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”, e colunista da Folha de S. Paulo.