sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Que passe rápido essa doença do bolsonarismo

Dois textos primorosos dos jornalistas Ruy Castro e Mariliz Pereira Jorge, publicados ontem e hoje na Folha de S. Paulo, dão a exata medida do que é o bolsonarismo e das pequenas tragédias cotidianas que o Brasil está enfrentando com esse meme que virou presidente. É um período absolutamente surreal. Triste. Lamentável. Que passe rápido, para o bem de todos.

Mariliz Pereira Jorge: Fale mais, Bolsonaro

O peixe e o falastrão quase sempre morrem pela boca

Bolsonaro disse que não vai mudar seu jeito. Ele está certo. Tem que continuar desse jeitinho, tão "espontâneo", sem filtro, que seus eleitores admiram. Apoio total para que diga tudo o que pensa. Fale mais, presidente. Fale tudo o que vossa excelência, ops, pensa. Faça piada com pinto de japonês, chame nordestino de paraíba, diga que não tem fome no Brasil, minimize a questão do trabalho infantil, ameace jornalista de pegar cana.

Diga que não houve ditadura, que jornalista torturada não foi torturada. Insinue que sabe o que aconteceu com desaparecido político. Chame de balela documentos oficiais sobre os mortos do regime. Diga que o nazismo é de esquerda. E que o Exército não matou ninguém, afinal, o que são 80 tiros?

Diga que pode perdoar o Holocausto, que vai fechar a Ancine, que não pode filme com prostituta ou propaganda com transexual. Proíba as palavras "lacrou" e "morri" em peças do governo. Diga mais, mito, diga que vai privilegiar o filhão com uma embaixada e que vai mandar a família passear com helicóptero da FAB.

Fale para quem quiser ouvir que o Brasil não pode ser país de turismo gay, mas quem quiser sexo com mulher, fique à vontade. Fale mais, tiozão do pavê. Diga que só os veganos se preocupam com o meio ambiente. Defenda trabalho forçado para presidiários. É proibido, mas e daí?

Fale mais, sincerão. Diga que o IBGE não sabe nada sobre desemprego, que a Fiocruz não tem dados confiáveis sobre drogas, que o Inpe mente sobre o desmatamento, que o Brasil é exemplo para o mundo em preservação ambiental, o país que menos usa agrotóxico.

Fale mais, todos os dias, sem falhar nenhum, para que seja de conhecimento geral, para que não nos esqueçamos nem por um único dia o autocrata, ignóbil, sem empatia, o ser obtuso que desgoverna este país. Fale mais, que tá pouco. Fale mais porque o peixe e o falastrão quase sempre morrem pela boca.

Mariliz Pereira Jorge
Jornalista e roteirista de TV


Ruy Castro: Se você ainda

Se ele faz tudo isso em público, imagine na intimidade

Se você acha Jair Bolsonaro um horror só porque ele detesta índios, gays, transexuais, nordestinos, crianças, professores, estudantes, cientistas, artistas, jornalistas, pacifistas, imigrantes, doentes mentais, dependentes químicos, presidiários, desaparecidos políticos, ambientalistas, veganos e até famintos; ou se você se assusta porque, em vez daqueles, ele prefere torturadores, milicianos, fabricantes de armas, chacinadores, devastadores do ambiente, mineradores, disseminadores de agrotóxicos, exploradores do trabalho infantil, criminosos do trânsito, censores e, de modo geral, as piores pessoas do país;

Se ele lhe provoca náuseas ao fazer declarações impiedosas sobre pessoas mortas, tanto as que morreram de fome, nos presídios, nas ruas ou mesmo em combate, e ao insultar suas famílias, que têm o direito de amá-las; ao demonstrar seu cavalar desconhecimento sobre artistas que elevaram o nome do Brasil no exterior, como João Gilberto; e, dizendo-se cristão, frequentar igrejas por motivos políticos tanto quanto estádios de futebol;

Se você se indigna porque ele despreza instituições que nos tornaram adultos e respeitados, como o Itamaraty, o Inpe, a Funai, o Ibama, a Fiocruz e a OAB, e, diariamente, agride uma Constituição que jurou respeitar e nunca leu; ou porque desmerece o trabalho de brasileiros que têm dedicado a vida a construir o Brasil, e não a parasitá-lo durante 28 anos num covil da Câmara dos Deputados;

Se você continua esperando que ele se explique sobre as histórias mal contadas que o cercam, envolvendo seus filhos, motoristas que “sabem fazer dinheiro”, vendedoras de açaí, ministros suspeitos, candidatos laranjas e mentiras puras e simples;

Enfim, se você ainda se surpreende ouvindo-o dizer coisas inenarráveis ao ser filmado cortando o cabelo numa cadeira de barbeiro, imagine o que ele não faz sozinho, sem testemunhas, sentado em outra espécie de trono.

Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues