O sintoma mais evidente de nossos tempos é uma raiva psicopata, sem freios
morais: "Concorde comigo ou morra".
Essa raiva é facilitada por teorias conspiratórias: não se discute com inimigos
que conspiram nas sombras. Eles devem ser aniquilados.
Por exemplo, sem a teoria de uma conspiração judaica contra o mundo ("O
Protocolo dos Sábios de Sion", um falso), o genocídio dos judeus pelos
nazistas talvez acontecesse, mas não teria como se justificar.
As teorias da conspiração sempre existiram, mas se multiplicaram nos anos
1960. Agora a internet ajuda sua proliferação.
O fim da Segunda Guerra deixou a todos sem a tarefa meritória de acabar
com fascismo e nazismo. E o futuro era o
possível conflito nuclear: seria bom se cada lado pudesse focar um "inimigo".
Algumas tinham a ver com eventos específicos (quem matou Kennedy, hein?). As mais interessantes e loucas eram interpretações do
"sistema" inteiro. Quem tentava se apoderar do mundo, hein? Os judeus, os
maçons, os católicos?
Como se fabrica uma "boa" teoria conspiratória? Um pouco de "sexto
sentido"; uma retórica vaga e estereotipada (os discursos de MacCarthy ou a
acusação nos processos de Praga em 1952); uma grande valorização da
família (só dá para confiar nos parentes em primeiro grau) e a arte de
transformar qualquer julgamento negativo sobre a gente em um temor
paranoide dos outros, que conspiram contra nós.
Quem quiser ler mais sobre a cultura da conspiração pode ver Michael
Barkun ("Culture of Conspiracy", 2003).
As teorias da conspiração satisfazem a nossa ávida procura de um sentido da
história e do mundo. E é um sentido simples: a luta entre a luz (a gente) e a
escuridão (os outros).
Também as teorias conspiratórias são um amparo para o exército dos que
não conseguem mudar sua vida para melhor: eles atribuem assim seus
infortúnios a uma força externa e irresistível (nada a ver com eles).
Visto pela esquerda, o mundo era um complô da CIA ou do mercado
(endinheirados de quartola reunidos em salas privadas de restaurantes
caros). Visto pela direita (sobretudo libertária), o mundo era um complô da
KGB para impor os abusos da potência do Estado: os tanques russos sairiam
de Budapeste (1956) ou de Praga (1968) e desfilariam pelas nossas ruas.
Toda teoria conspiratória confere uma gratificação narcisista a quem
acredita nela (diferentemente da massa ignara, eu sei o que está acontecendo
de verdade). Infelizmente, toda teoria conspiratória, assim que ela for
constituída, adota um viés de confirmação: ou seja, tudo que discorda dela é
considerado como o fruto da atividade oculta dos inimigos. Torna-se
impossível argumentar.
Um dos maiores historiadores conservadores dos Estados Unidos, Richard
Hofstadter, escreveu uma obra ainda seminal: "The Paranoid Style in
American Politics" (1964).
As observações dele ainda podem nos guiar.
Por exemplo, o inimigo é, em
grande parte, uma projeção do sujeito que se sente perseguido. O estilo
paranoide é, no fundo, a imitação do suposto inimigo.
Tomemos o exemplo da teoria conspiratória do momento, o dito "marxismo
cultural", ou seja, a ideia de que haveria um complô para tornar o marxismo
dominante em nosso mundo.
A ideia é especialmente ridícula, considerando que o marxismo não deu
muito certo na sua luta cultural: não emplacou nem a ideia de luta de classe
nem o projeto de terminar com o Estado.
Desde a metade do século passado, a esquerda apenas defende os valores da
Revolução Francesa (que foi a grande revolução burguesa): igualdade perante
a lei, solidariedade, liberdade e laicidade.
Esses valores, que tornaram o mundo mais habitável, são hoje atacados
como se fossem "marxistas".
Bom, uma teoria conspiratória ajuda a 1) ter inimigos que a gente possa
perseguir, 2) não revelar que a gente é incapaz de pensar, 3) não revelar que a
gente é incapaz de governar (me defendo dos "marxistas culturais", isso não
é um plano suficiente para o Ministério da Educação?), 4) justificar um
aparelhamento ideológico pior do que o que seria praticado pelos inimigos
(rezas, bandeiras, hino e outras baboseiras, em vez de um plano de estudos).
Enfim, Hofstadter dizia também que, nas teorias conspiratórias, a "liberdade
sexual" é um vício frequentemente atribuído aos inimigos. Engraçado, hein?
Contardo Calligaris é psicanalista, colunista da Folha de S. Paulo, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).