Num dia como essa terça-feira, 25 de junho, em que a maioria governista estava empenhada em fazer manobras regimentais para barrar a CPI dos Ônibus, não faltaram cenas impagáveis.
Na reunião do "colégio de líderes", espécie de Escolinha do Professor Raimundo em que representantes de todas as bancadas se reúnem semanalmente para ensaiar acordos de votação, seguindo o script governista, o vereador Milton Leite surpreendeu pela indignação contra os vereadores Toninho Vespoli (PSOL) e Ricardo Young (PPS), que defendiam a CPI para abrir a "caixa preta" do sistema de transportes na cidade.
"Eu não admito que se fale em caixa preta", bradava Milton Leite, líder do bloco DEM/PR. "Por que não falam caixa branca, ou caixa que precisa ser aberta? Caixa preta é preconceito!". O advogado Sergio Arruda (foto), na platéia, não resistiu: "Eu sou negro e não me considero ofendido, caixa preta é um termo utilizado na aviação!".
Não bastou constatar o óbvio. Sob apupos do público que lotava a sala do "colégio de líderes", à espera da votação da CPI, o vereador Milton Leite não se deu por satisfeito: "Vá disputar uma eleição, ter votos e se eleger para poder discutir comigo!", rebateu. A discussão nonsense acabou por aí, mas os momentos memoráveis prosseguiram.
Líder do PSDB, o vereador Floriano Pesaro criticava o secretário de Transportes por ter afirmado que qualquer CPI serviria para "achacar os empresários do setor". Comportamento emblemático deste "novo" PT. "É um desrespeito à Câmara essa afirmação do secretário Jair Tatto!". Foi interrompido pelo líder do Governo, Arselino Tatto: "O meu irmão Jair Tatto também é vereador, assim como eu; mas o secretário é o Jilmar Tatto". O tucano não perdeu a piada: "É verdade, é tanto Tatto na política que a gente confunde". Seguiram-se risos de todos os presentes (e, aos que presenciaram a cena, foi impossível não lembrar da claque típica dos programas de humor).
O decano Wadih Mutran, que se diz o vereador mais "independente" da Câmara (pois independente do prefeito eleito, ele permanece na base governista há décadas), gosta de contar anos, meses, dias, horas e minutos do seu interminável mandato ("Sou vereador há 30 anos, seis meses, 25 dias, duas horas e 49 minutos", anuncia como um cuco do PP malufista). Ele bolou um argumento irrefutável para não aprovar a CPI "da oposição".
"Não podemos aprovar essa CPI dos Ônibus só porque a população foi às ruas criticar o prefeito Haddad e pressionar a Câmara", afirmou, com autoridade inquestionável. "Somos nós, vereadores, que decidimos qual CPI devemos aprovar e quando, não temos urgência nenhuma, então vamos deixar para depois do recesso e aprovar a CPI do Paulo Frange, que está na pauta há 12 anos". Realmente, uma sensibilidade ímpar com a "voz das ruas".
O desespero que tomou conta do PT ficou evidente com os crescentes desentendimentos entre o líder do Governo, Arselino Tatto, e o presidente da Câmara, José Américo, ambos petistas. Como estavam todos os líderes na reunião do oitavo andar, o presidente recomendou que o 1º vice, Marco Aurélio Cunha (PSD), ou o secretário Claudinho de Sousa (PSDB) abrissem e suspendessem a sessão ordinária do dia, às 15h, para possibilitar o prosseguimento dos debates quando todos descessem ao plenário no primeiro andar.
Porém, em mais uma tentativa de barrar a CPI, Arselino Tatto alegou que não havia 19 vereadores presentes para a abertura da sessão e a consequente suspensão dos trabalhos. Assim, no entendimento do líder do Governo, regimentalmente a sessão não poderia ser "reaberta", como queria José Américo.
"Está aqui a lista de presença oficial da Casa: não havia 19 vereadores para abrir nos 15 minutos regimentais, e o presidente encerrou a sessão por falta de quórum", mostrava Tatto. Nervoso e preocupado com o desgaste da Câmara diante dos manifestantes, Américo rebateu com um singelo: "Ele se enganou, não viu que havia quórum e vamos retomar a sessão."
O presidente José Américo conduz as sessões com um humor peculiar. Troca o nome dos colegas (Wadih Mutran vira Valdir; Dalton Silvano é Danton; Milton Leite é chamado de Mailton Milk e Alfredinho, de Little Alfred), inventa citações de "filósofos" como Zeca Pagodinho ("Vamos em frente que atrás vem gente") e Paulo Cintura ("Votar é o que interessa, o resto não tem pressa"), e se gaba de ter lido apenas a "orelha" dos livros de Direito.
Vereadores tentaram fazer graça também com a representante do Movimento Passe Livre, Mayara Vivian, presente ao "colégio de líderes" e direta no recado: "Para os manifestantes não há recesso; se não for aprovada a CPI, vamos atrás dos vereadores na praia, na piscina, onde for necessário".
A "provocação" à jovem foi questionar se ela seria mais fã do senador Eduardo Suplicy ou do presidente da Câmara, José Américo. A resposta foi rápida: "Não sou fã de político ou de partido nenhum, sou fã dos Ramones e de algumas outras bandas."
Pouco antes, durante audiência da Comissão da Verdade com o ex-ministro da Fazenda nos anos de chumbo da ditadura, Delfim Netto, signatário convicto do AI-5 ("assinei e assinaria de novo"), houve outro momento digno de nota. Delfim simplesmente alegou desconhecer qualquer episódio de tortura ou ligação do "governo civil" com o regime militar: "Linha dura? Que linha dura? Era um bando de maluquetes!". Risos pelo humor involuntário. Nem Freud explica.
Esse é o relato de uma única tarde na Câmara Municipal de São Paulo. Digna de qualquer antologia. E ainda tem gente que se surpreende com Saramandaia... Eis o retrato do Brasil!
Delfim Netto: Fotos de RenattodSousa/CMSP
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