segunda-feira, 24 de junho de 2013

Líder? Que líder? Será o fim da velha política?

O que o Movimento #VemPraRua vem causando? Primeiro, a crise mais óbvia: os governantes estão perdidos, batem cabeça, fazem pronunciamentos vazios (quando não, desastrosos), anunciam uma medida de manhã e recuam à noite (como fez Haddad com a revogação do aumento da tarifa em São Paulo), mostram-se constrangidos ou simplesmente omissos.

Segundo, a crise mais grave e complexa: a maioria ainda não entendeu a força das redes sociais e o estrondoso sucesso de um movimento "(des)organizado", alheio às estruturas tradicionais da política e da sociedade (governos, partidos, sindicatos, igrejas, entidades), que surgiu como resposta espontânea da sociedade indignada com os desmandos e abusos dos atuais ocupantes do poder, clamando por uma nova forma de fazer política e a redemocratização da democracia.

Aí, qual é a reação automática dos políticos, seguindo a lógica das velhas cartilhas da política partidária, incluída a presidente Dilma Roussef no pronunciamento desta sexta-feira, 21 de junho? Anunciam a disposição de "dialogar com os líderes do movimento". Ora, ora. Não entenderam nada, realmente.

Não há líderes nesses movimentos populares surgidos espontaneamente nas redes, meus caros velhos políticos. Não existe comando, nem hierarquia. Predomina a horizontalidade. Não existe "núcleo", é a manifestação das "bordas". O que prevalece é um ativismo autoral (para usar os termos de alguém que compreende há algum tempo o que está acontecendo: Marina Silva).

É importante que se diga: nem o Movimento Passe Livre, que existe há oito anos com uma dezena de jovens inteligentes e bem articulados, lidera coisa alguma, apenas desencadeou a onda de protestos ao mostrar que é possível mobilizar a sociedade e pressionar os políticos por uma causa justa.

Aliás, vamos comparar o que dizem quatro políticos sobre os últimos acontecimentos. É um exercício bastante revelador. Leia abaixo a íntegra do pronunciamento de Dilma Roussef (PT), e na sequência artigos de Marina (Rede Sustentabilidade), de Fernando Gabeira (PV) e do deputado Arnaldo Jardim (PPS).

Íntegra do pronunciamento de Dilma Roussef 

Minhas amigas e meus amigos,

Todos nós, brasileiras e brasileiros, estamos acompanhando, com muita atenção, as manifestações que ocorrem no país. Elas mostram a força de nossa democracia e o desejo da juventude de fazer o Brasil avançar.

Se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas. Mas, se deixarmos que a violência nos faça perder o rumo, estaremos não apenas desperdiçando uma grande oportunidade histórica, como também correndo o risco de colocar muita coisa a perder.

Como presidenta, eu tenho a obrigação tanto de ouvir a voz das ruas, como dialogar com todos os segmentos, mas tudo dentro dos primados da lei e da ordem, indispensáveis para a democracia.

O Brasil lutou muito para se tornar um país democrático. E também está lutando muito para se tornar um país mais justo. Não foi fácil chegar onde chegamos, como também não é fácil chegar onde desejam muitos dos que foram às ruas. Só tornaremos isso realidade se fortalecermos a democracia – o poder cidadão e os poderes da República.

Os manifestantes têm o direito e a liberdade de questionar e criticar tudo, de propor e exigir mudanças, de lutar por mais qualidade de vida, de defender com paixão suas ideias e propostas, mas precisam fazer isso de forma pacífica e ordeira.

O governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros, apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos. Essa violência, promovida por uma pequena minoria, não pode manchar um movimento pacífico e democrático. Não podemos conviver com essa violência que envergonha o Brasil. Todas as instituições e os órgãos da Segurança Pública têm o dever de coibir, dentro dos limites da lei, toda forma de violência e vandalismo.

Com equilíbrio e serenidade, porém, com firmeza, vamos continuar garantindo o direito e a liberdade de todos. Asseguro a vocês: vamos manter a ordem.

Brasileiras e brasileiros,

As manifestações dessa semana trouxeram importantes lições: as tarifas baixaram e as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional. Temos que aproveitar o vigor destas manifestações para produzir mais mudanças, mudanças que beneficiem o conjunto da população brasileira.

A minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida. Muitos foram perseguidos, torturados e morreram por isso. A voz das ruas precisa ser ouvida e respeitada, e ela não pode ser confundida com o barulho e a truculência de alguns arruaceiros.

Sou a presidenta de todos os brasileiros, dos que se manifestam e dos que não se manifestam. A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática.

Ela reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos. Todos me conhecem. Disso eu não abro mão.

Esta mensagem exige serviços públicos de mais qualidade. Ela quer escolas de qualidade; ela quer atendimento de saúde de qualidade; ela quer um transporte público melhor e a preço justo; ela quer mais segurança. Ela quer mais. E para dar mais, as instituições e os governos devem mudar.

Irei conversar, nos próximos dias, com os chefes dos outros poderes para somarmos esforços. Vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país para um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos.

O foco será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que privilegie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de cem por cento dos recursos do petróleo para a educação. Terceiro, trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Anuncio que vou receber os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares. Precisamos de suas contribuições, reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente.

Brasileiras e brasileiros,

Precisamos oxigenar o nosso sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar.

Quero contribuir para a construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular. É um equívoco achar que qualquer país possa prescindir de partidos e, sobretudo, do voto popular, base de qualquer processo democrático. Temos de fazer um esforço para que o cidadão tenha mecanismos de controle mais abrangentes sobre os seus representantes.

Precisamos muito, mas muito mesmo, de formas mais eficazes de combate à corrupção. A Lei de Acesso à Informação, sancionada no meu governo, deve ser ampliada para todos os poderes da República e instâncias federativas. Ela é um poderoso instrumento do cidadão para fiscalizar o uso correto do dinheiro público. Aliás, a melhor forma de combater a corrupção é com transparência e rigor.

Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as arenas é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e os governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários como a Saúde e a Educação.

Na realidade, nós ampliamos bastante os gastos com Saúde e Educação, e vamos ampliar cada vez mais. Confio que o Congresso Nacional aprovará o projeto que apresentei para que todos os royalties do petróleo sejam gastos exclusivamente com a Educação.

Não posso deixar de mencionar um tema muito importante, que tem a ver com a nossa alma e o nosso jeito de ser. O Brasil, único país que participou de todas as Copas, cinco vezes campeão mundial, sempre foi muito bem recebido em toda parte. Precisamos dar aos nossos povos irmãos a mesma acolhida generosa que recebemos deles. Respeito, carinho e alegria, é assim que devemos tratar os nossos hóspedes. O futebol e o esporte são símbolos de paz e convivência pacífica entre os povos. O Brasil merece e vai fazer uma grande Copa.

Minhas amigas e meus amigos,

Eu quero repetir que o meu governo está ouvindo as vozes democráticas que pedem mudança. Eu quero dizer a vocês que foram pacificamente às ruas: eu estou ouvindo vocês! E não vou transigir com a violência e a arruaça.

Será sempre em paz, com liberdade e democracia que vamos continuar construindo juntos este nosso grande país.

Boa noite!

Marina Silva: "Aprendizado essencial"

Ninguém deveria estar surpreso, sabíamos que iria ocorrer. A internet ajuda a mudar tudo: a cultura, os negócios, as comunicações. Por que só a política não seria afetada?

Carlos Nepomuceno diz que três fatores ajudaram a transformar o mundo: a impressão em papel, a Revolução Francesa e a independência dos EUA. Eles compuseram a realidade de dois séculos e nos trouxeram até aqui, mas são insuficientes para configurar um mundo com 7 bilhões de pessoas e uma ferramenta que quebra as estruturas convencionais para intermediar a informação, a internet.

Tenho falado, aqui mesmo na Folha, daquilo a que chamo movimentos de borda. Eles se afastam do centro político estagnado, das instituições enrijecidas, das disputas por dinheiro e poder. Neles predomina um ativismo autoral, não mais dirigido por partidos ou lideres carismáticos. A presença destes é residual e produz incômoda sensação de oportunismo. Não há comando único, há relação horizontal e lideranças móveis: hoje lidero, amanhã sou liderado; hoje sou arco, amanhã sou flecha.

Esse ativismo não tem porto, carrega sua âncora e estaciona onde quer. Basta ver quantos sites temporários há na internet, usados numa mobilização ou num momento.

O essencial é perceber o que está latente. Não são os 20 centavos no Brasil, as árvores da praça na Turquia, ou qualquer demanda simbólica visível. O que está em pauta é a democratização da democracia. As pessoas não querem ser meros espectadores, lugar em que foram colocadas pelos partidos que detêm o monopólio da política. Querem ser protagonistas, reconectar-se com a potência transformadora do ato político.

Deve-se reconhecer esse desejo e respeitar o sujeito político que surge. Muitos se apressaram em desqualificar os novos movimentos, os abaixo-assinados, a campanha de defesa das florestas, a solidariedade aos índios, o "Fora Renan". Agora se esforçam para descobrir uma forma de interlocução, mas mantendo a ansiedade de liderar, usurpar, controlar.

Não basta dar 20 centavos para tirar o incômodo da sala. O que está havendo é significativo: no país do futebol, durante a Copa das Confederações, as pessoas protestam contra o custo dos estádios e dizem que queremos nosso dinheiro em saúde e educação.

O Brasil pode aprender a fazer diferente: nem transição eterna e lenta nem ruptura brusca, mas o diálogo produtivo e criativo da democracia ampliada. Temor de vandalismo? Ora, cultivemos uma cultura de paz. Prefiro sentir-me representada pelas pessoas que estão nas ruas, dizendo o que não querem, a exigir que tenham projetos definidos.

Não há salvadores da pátria, há homens e mulheres que trabalham juntos. Que seja este nosso aprendizado essencial, nossa maior mudança.

Fernando Gabeira: "Sra. Rousseff, alguma coisa acontecendo"

Alguma coisa está acontecendo e eu não sei exatamente o que é. Antes dos conflitos de rua no Brasil, recebi o livro de Manuel Castells-Redes de Indignação e Esperança. Castells é professor numa universidade da Califórnia e dedica-se ao estudo das redes e sua importância neste início do século. Examinou a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, o movimento dos indignados na Espanha e o caso da Islândia.

Antes mesmo desses movimentos, Castells via nas redes o caminho por meio do qual uma nova geração de ativistas buscaria mudança política fora do alcance dos métodos habituais de controle político e econômico. Segundo Castells, esses movimentos são mais voltados para explorar o sentido da vida do que para conquistar o Estado capitalista.

Essa observação é, para mim, curiosa. Nos anos 6o, alguns, como eu, transitaram do existencialismo para o marxismo. Agora, o existencialismo parece estar de volta. De novo, uma parcela da juventude sai em busca do sentido: conectar as mentes, criar significados, contestar o poder é a frase que Castells utilizou para sintetizar o programa dessas redes.

Se isso é verdadeiro para o Brasil, os R$ 0,20 de aumento dos ônibus foram apenas um dos pretextos para expressar a revolta. E os grupos da esquerda clássica, apesar de seu estardalhaço, funcionam aí apenas como aquelas lavagens na pedra que dão aparência de velho ao jeans que acaba de ser fabricado.

Criar significados em política significa também colocá-los na mesa para o debate. Não posso, por exemplo, condenar o Movimento Passe Livre porque no passado apoiei a tese do fim do passaporte no mundo. Até que me deparei com a gigantesca realidade da imigração internacional. A inquietação com o transporte coletivo pode ser existencialmente resolvida com a palavra de ordem passe livre. Mas apenas ela não muda a realidade dos que usam ônibus no Brasil.

O preço é amparado no aumento da inflação, que não deveria ser a única referência. Conforto, pontualidade, respeito ao usuário, condições de trabalho

dos motoristas, tudo precisa ser monitorado. Mas existe uma cumplicidade histórica de vereadores e deputados com as empresas de ônibus. No Rio de Janeiro, por anos, houve até pagamento mensal na Câmara. Mensalinho, mensalão, olha pro céu olha pro chão.

Lutar só pelo passe livre nos remete a um ônibus utópico. O que fazer com pessoas esgotadas depois de um dia de trabalho? Dizer, ano após ano, “coragem, irmão, o reino de Deus está próximo”?

A única cidade que adotou o passe livre, Porto Real, no Rio de Janeiro, o fez para atrair grandes empresas que queriam se instalar lá: Coca Cola e Citroen Peugeot. Foi um cálculo econômico e eu vou lá para estudar o caso.

Um dos aprendizados mais importantes para a geração que saiu às ruas no passado é o compromisso com a democracia, o que significa rejeitar a tese de que os fins justificam os meios. A violência derruba as melhores intenções. Ela é o inimigo interno que corrói a simpatia popular e acaba esvaziando as ruas. Em alguns lugares do mundo, governos usam provocadores infiltrados para desmoralizar o adversário.

Conselhos são vistos com desprezo num momento como este. Mas a história não começa do zero. Essa presunção é absurda e só tem validade na cabeça do PT, que acredita ter inaugurado o Brasil, em 2003.

Como as inquietações se transformam em mudanças, se a própria timoneira parece perdida? Dilma diz que está tudo maravilhoso, e tome vaia da torcida. O governo trouxe a Copa do Mundo para o Brasil por achar que isso era uma trunfo eleitoral imbatível. Todos os seus defensores afirmam que foi uma condenação da classe média alta. Como se fosse preciso examinar a renda antes de avaliar o peso de um protesto e como se as ruas de todo o País, de São Paulo a São Gonçalo, estivessem tomadas por gente da alta classe média.

É um momento duro para ela. Mas foi o PT que fez baixar o mais pesado manto de cinismo sobre a vida política brasileira. Dilma afirmou um dia que não tem perfil de candidata. Concordo com sua análise. No entanto, foi eleita num período de crescimento econômico, de esfuziantes gastos oficiais e milhões consumidos na máquina de propaganda.

Isaiah Berlin compara as habilidades de um governante às de um motorista que precisa de reflexos porque se vê, constantemente, diante de situações novas e inesperadas. De nada adiantam erudição e conhecimento histórico nem o batalhão de conselheiros. Há uma solidão inescapável do ofício do estadista.

Dilma foi embriagada pela dose de otimismo que o marketing ministrou. Afirma que são terroristas os que alertam para a inflação. Em seguida, diz que o governo vai dar a volta por cima. Segundo a própria canção, só se dá a volta por cima depois de uma queda e de sacudir a poeira.

Ela lançou uma lei de acesso a informações e proíbe os assessores de divulgar dados sobre suas viagens oficiais, hotéis, comitivas, gastos, sobretudo gastos.

Quando a maré baixa, dizem os analistas econômicos, fica evidente quem está nadando nu. Isso vale para os atores políticos nas grandes viradas históricas.

Lula diz que elegeu postes para melhor iluminar o Brasil. Referia-se a Dilma e a Fernando Hadad. E muito poético, até que se descubra a realidade úmida do poste, quando adotado pelos cachorros da vizinhança.

Para mim, o sistema de dominação que transformou a política brasileira num bordel entrou em declínio.

Na Islândia, que é muito pequena para ser um modelo, as revoltas desembocaram numa substituição do governo, numa nova maneira de gastar o dinheiro e numa Constituição moderna, que busca integrar a participação popular, potencializada pela revolução digital.

Alguma coisa está acontecendo no Brasil. Você pode ser contra, a favor ou mesmo ficar em cima do muro. Mas não pode negar a frase de Galileu Galilei: Eppur si miove” (Ainda se move)

Arnaldo Jardim: “E agora José...”

“Você que faz versos,
Que ama, protesta?...
... E agora José?
Você marcha José, José para onde?
Marcha José, José para onde?....”

(Carlos Drummond de Andrade)

O transporte público no Brasil é uma calamidade e a partir daí as redes sociais despejaram nas ruas milhares de brasileiros e seus protestos exigindo que não aumentassem as tarifas de ônibus, trens, barcas e metrôs. Mais do que isso, que não mais cobrassem passagem alguma, que dessem conserto na saúde, na educação; um basta à corrupção e parassem de mandar a polícia militar bater em quem mais se manifestar.

Outros mais foram às ruas, a polícia recolheu-se e os governantes de Rio e São Paulo anunciaram àquela massa difusa que contestava seu poder que sim, voltavam atrás e à tarifa anterior. Até segunda ordem, não haverá aumento de passagem... Também em outras capitais e cidades.

Li notícias e análises, ouvi noticiários conversei com meus filhos – que foram à passeata – e com muitas outras pessoas. É grande a minha alegria de ver a cidadania sendo exercida. Eu me formei cidadão em ambiente semelhante, como líder estudantil, participante de manifestações contra a ditadura, pelas eleições diretas. Saúdo como um saudável suspiro democrático. Desejo que o movimento traga à tona uma série de temas, sobre a qualidade dos serviços públicos, sobre a condução da nossa economia e faça também emergir ideias e novas lideranças.

É preciso construir um espaço político para fazer política quando as instituições hoje corroídas e corrompidas, infelizmente não atendem às exigências que os cidadãos já contabilizam pela via da democracia eleitoral. É preciso irrigar e renovar as instituições aproximando-as da realidade que os cidadãos expõem nas ruas.

O que aconteceu – ilustrado pela quantidade de reivindicações postadas no bornal dessa enorme manifestação centopéica – expõe a absoluta falta de diálogo que preside a sociedade brasileira. O exercício político dos últimos tempos evidencia uma prática empobrecida do “nós contra os outros”, que soma inúmeras demandas especificas e não é capaz de colocá-las dentro de um projeto nacional. Isto pode ser profundamente danoso à democracia, cujo fundamento é o respeito às diferentes visões de mundo, à vontade da maioria e o reconhecimento das instituições.

Vejo também a ausência de lideranças e interlocutores – a prova disso é que não havia representantes do movimento ao lado dos governantes quando anunciaram a capitulação diante dos telespectadores. Da mesma forma não tem havido sensibilidade política das lideranças formais do país para se aproximar do cerne democrático do movimento. Os objetivos são dispersos e é lamentável – o que precisa ser coibida sem concessões – a ação de grupos sectários, que depredando o patrimônio público e privado, têm fraudado a índole pacífica de milhares.

A substância da massa que agora confronta políticos e governantes mais se parece com aquela dos caras pintadas que puseram fim ao governo de Fernando Collor. Está muito longe do projeto coletivo de resgate democrático das “Diretas Já”, por exemplo, quando multidões cardeais caminharam para a construção institucional brasileira arrebanhando estudantes, profissionais liberais, sindicalistas, igrejas, operários e suas representações.

As manifestações de agora ainda têm uma textura de “flashmob” – ação combinada pelas redes sociais para provocar impacto coletivo momentâneo, sem compromisso de evoluir para desenvolvimentos mais complexos, como são os da política, por exemplo. Os manifestantes não querem saber de partidos políticos, pedem que abaixem suas bandeiras, mas não os excluem. Será necessário falar de política, não partidária e eleitoral, mas de propostas globais, de prioridades, de “visões de mundo” que viabilizem transformações profundas e duradouras.

As redes sociais contribuíram para que as pessoas se organizassem e chegassem às ruas na proporção que estamos assistindo. E aí considero a importância de identificar os anseios da sociedade por meio dessas ferramentas, estabelecer com ela o diálogo democrático e responder às questões formuladas em conjunto com instituições mais modernas. Se acolherem o contraditório e a discussão plural as redes podem realmente vir a ser no Brasil um saudável berço de democratização política e de exercício da ética.

Espero, e somarei esforços para isto, que os manifestantes pretendam aprofundar e renovar o diálogo democrático, metendo fundo o dedo no conteúdo de suas reivindicações. Além de estabelecer claras lideranças, terão que discutir as contendas dentro do Congresso Nacional, com o Executivo e com o Judiciário, poderes que presidem a República Federativa do Brasil, sustentada por uma Constituição promulgada à custa de muita luta cujos 25 anos se comemoram neste ano.

O alerta é saudável e tem endereço certo. No rastro dos outros, o governo central de hoje optou claramente pelo transporte individual, e cometeu mais uma desnorteada distração ideológica da política econômica que imagina a redenção social do brasileiro pregada na cruz do consumo.

Estar atento a esse puxão de orelhas que vem das ruas, reorganizar sua pauta, refazer seu funcionamento, incorporar definitivamente a ética como valor central, é isto que as instituições e, particularmente, a Câmara dos Deputados e o Congresso Nacional teem obrigação de fazer. Que este ar fresco venha para fixar e oxigenar a nossa democracia e coloque sob condições mais justas e promissoras nosso país e seu povo!