O rio Pinheiros transbordou e causou 3 km de congestionamentos; o túnel do Anhangabaú inundou; semáforos da avenida Paulista entraram em pane; o muro do cemitério da Lapa caiu; a enchente destruiu fantasias e esculturas no barracão da Pérola Negra.
Todas as frases acima estavam na capa do caderno Cotidiano de ontem, sob o título "Tempestade trava SP em pleno domingo". E o que seria se aquela água toda tivesse caído ontem, no mesmo horário?
Não presenciei nenhuma dessas cenas. Meus transtornos foram quase um luxo para os padrões da cidade. Fugindo da Rebouças, intransitável, desci a Arthur de Azevedo e virei à esquerda na Henrique Schaumann. Dei de frente com carros que subiam assustados na contramão, alguns em marcha a ré, outros com faróis acesos. Ninguém passava entre a Rebouças e a Brasil.
Fugimos todos pela Arthur e poucas quadras adiante... tudo alagado. Virar à direita? Carros cobertos diziam que não. Pegamos, eu e outros fugitivos, a contramão na Joaquim Antunes. Atravessamos a Rebouças com o semáforo quebrado e logo... tudo alagado de novo. Pensei que a entropia de carros tivesse definitivamente me enredado, mas achei outra contramão.
Ainda pude ver, no Morumbi, um povo sempre disposto a se divertir nadando nas águas sujas da piscina que se formou na arquibancada.
No auge do caos, senti, por instantes, que havia me transformado em personagem do "Ensaio sobre a Cegueira". Mas logo percebi que a minha, e a de milhares de pessoas em apuros, era uma espécie de não-história. Nada deu suficientemente errado para virar notícia. Não na Veneza do prefeito Kassab. Nenhuma árvore na cabeça, o carro não saiu boiando, estou vivo e ainda por cima seco -reclamar do quê?
O que dizer quando a visão do colapso começa a se tornar monótona e as pessoas, nas fotos, parecem até resignadas? O que pensar e esperar quando a tragédia urbana parece já incorporada à rotina da cidade?
(Artigo de Fernando de Barros e Silva, publicado na Folha de S. Paulo de terça, 1º de março de 2011)