Mundo obscuro ajudou a eleger um presidente
"Até agora, todos os ditadores tiveram de trabalhar duro para suprimir a verdade. Nós, por meio de nossas ações, estamos dizendo que isto não é mais necessário (...) decidimos livremente que queremos viver num mundo pós-verdade". Steve Tesich, dramaturgo sérvio, 1992.
A verdade está perdendo importância na compreensão do mundo. Esse é um fenômeno de forte conteúdo político que busca impor uma narrativa que prescinde ou distorce os fatos.
Hoje, muitos youtubers direitistas veiculam uma mensagem padronizada: nas últimas décadas, estava em curso a implantação do comunismo no Brasil. Nessa teoria conspiratória, o filósofo Antonio Gramsci seria o pilar de um movimento global para destruir o capitalismo a partir das instituições educativas, políticas e culturais. Uma revolução secreta para desintegrar nossos valores tradicionais.
Nessa guerra psicológica, a agressividade de vários influenciadores não é apenas questão de estilo. É funcional, mesmo que muitos deles a adotem por imitação ou intuitivamente. Deve-se confundir o oponente, desacreditá-lo, abalar o seu moral.
A estratégia é a construção de uma narrativa pós-verdade, alheia ao conhecimento consolidado. Afinal, todos navegamos pelo mundo por meio de nossas histórias. Para aceitarmos dada interpretação da realidade, antes de tudo ela precisa fazer sentido. Uma história mentirosa coerente convence mais que uma verdade incoerente.
Esse esforço de reinvenção da interpretação da realidade está em curso. Todos os dias somos bombardeados por afirmações de ideólogos apresentando uma versão revisitada do passado e uma nova visão para o presente.
Em grande medida, as falas revisionistas de Bolsonaro, negando fatos sobre a ditadura militar ou alardeando uma "ameaça comunista", têm origem em Olavo de Carvalho, um dos responsáveis por importar e reembalar teorias conspiratórias norte-americanas.
Originalmente vinculado a seitas esotéricas e tariqas islâmicas, ele foi consolidando, em círculos marginais sem nenhum reconhecimento acadêmico, uma reputação de filósofo conservador, negando o legado do Iluminismo, da ciência moderna e dos valores democráticos decorrentes da Revolução Francesa.
Pouco importou que seu autodidatismo e falta de critério o levassem, por exemplo, a incitar o temor de um movimento global pela legalização da pedofilia. Esse mundo obscuro foi relevante na eleição de um presidente.
Neste instante, uma guerra ocorre no ambiente virtual. De um lado, arautos da pós-verdade, alguns ocuparão cargos políticos ou ministérios. De outro, cientistas, pesquisadores, professores, historiadores e filósofos esforçando-se para preservar uma compreensão mais criteriosa da realidade.
Confrontamos agora o avesso da verdade. Este é o instante no qual profissionais que trabalham com o saber devem estar dispostos a defender o conhecimento contra as investidas do obscurantismo, e no qual agentes políticos terão de evitar a corrosão das estruturas democráticas por figuras autoritárias que habitam um mundo de ilusões conspiratórias, onde comunistas espreitam a cada esquina.
Henry Bugalho é formado em filosofia, autor de "O Rei dos Judeus" e "O Personagem"; youtuber de temas filosóficos e contemporâneos
(Artigo publicado na Folha de S. Paulo de segunda-feira, 14 de janeiro de 2018)