“As eleições acabaram, não há lugar para revanchismo”, dizem os supostos
arautos da racionalidade, “agora é torcer pra dar certo” — e todos aqueles que
não acompanham as primeiras estultices do governo Bolsonaro fazendo
coraçãozinho com a mão são petistas ressentidos, incapazes de aceitar as
regras da democracia: “Vai pra Cuba!”.
Tenho dificuldade em torcer para o governo Bolsonaro “dar certo”, não por
ser um “petista ressentido” —no infinito rol dos inimigos da pátria criado por
esta direita neo-jurássica estou mais para “esquerda-caviar”. O problema é
que não compreendo o que seria este governo “dar certo”. Se for Bolsonaro e
sua milícia de Brancaleone conseguirem pôr em prática boa parte do que
prometeram na campanha e começaram a tentar implementar nas últimas
duas semanas —com exímia incompetência, felizmente—, estou fora.
Sejamos francos: estes caras são uns lunáticos. Como não chamar de maluco
quem acredita que o aquecimento global é um “plot marxista”? Quem acha
que a Folha (“Foice”) de S.Paulo e a Globo (“Red Globo”) são comunistas?
Quem vê um plano da esquerda, infiltrada em todas as ramificações do
ensino e da cultura, para destruir a família? Para Olavo de Carvalho, o Osho
da seita Jair messiânica, o “plot” é ainda mais doido: a esquerda é
manipulada pelo grande capital que, minando a família do trabalhador,
poderá explorá-lo melhor.
“A sociedade que o ‘multiculturalismo’ anuncia” —escreveu aqui na “Foice”,
em 2017, o Rajneesh dosbolsominions— “(...) é uma sociedade de tipo
romano em que só os ricos e poderosos têm o privilégio de possuir uma
família estruturada, enquanto o povão se esfarela numa poeira de átomos
soltos, sem pais nem mães, nem tradição, nem passado, nem referência —a massa de manobra ideal para os engenheiros sociais a soldo da elite
bilionária”.
Imagina o grau de delírio da pessoa para, toda vez que vê a bunda do Zé
Celso, enxergar a carteira do George Soros? Nem no Centro Acadêmico de
Ciências Sociais eu me lembro de testemunhar paranoia tão delirante. E olha
que lá no CA o pessoal misturava Foucault com maconha, Kaiser quente e
Bakunin —coquetel, agora sei, preparado pelos ocultos barmen da “elite
bilionária”.
Voltando à terra: imagino que a maioria dos que torcem para o governo “dar
certo” se refere à recuperação da economia. Sim, todos queremos
crescimento, empregos, riqueza. Mas o que viria na esteira deste
crescimento? Porte de arma para a população no país que já é o campeão
mundial em mortes por bala? “Ponto final em todos os ativismos no Brasil”,
i.e., mais violência contra mulheres, negros, LGBTs? Destruição das florestas,
extinção das reservas indígenas? Execuções sumárias pela polícia? Murundu
na política externa só para lamber as botas do Trump?
Os mesmos jedis da racionalidade que “torcem pelo Brasil” costumam reduzir
tudo à economia, como se o nosso grau de desenvolvimento pudesse ser
medido em toneladas de soja e as pautas de “costumes” fossem perfumaria.
Ora, “costume” não é dar um ou dois beijinhos. É uma questão de costume
escravizar ou não escravizar seres humanos. Uma mulher morrer assassinada
a cada duas horas é uma questão de costume. (Eis a tradição que se preserva
com a cretinice do azul e do rosa). Desigualdade e injustiça: costume. O que
separa a Noruega do Brasil não é a economia, o DNA, a providência
divina: são os costumes.
Sinceramente, não sei para o que torcer. Parece-me que a tragédia dell’arte
que ora se desenrola diante de nossos olhos não tem como “dar certo”.
Antonio Prata é escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”, e colunista do jornal Folha de S. Paulo.