Acabou o flá-flu: agora é todo mundo contra o Olaria
Devo admitir que pelo menos uma coisa boa o Bolsonaro conseguiu neste início de governo: pacificou meus grupos de WhatsApp. Havia dez anos que o flá-flu vinha corroendo os grupos da família, do trabalho, da faculdade; o grupo Réveillon 2012, cujo momento de maior tensão tinha sido um impasse sobre leite integral ou desnatado transformou-se, a partir de 2013, em mais um campo de batalha entre coxinhas e petralhas.
Na terra de ninguém do meu celular, a guerra chegou ao ápice logo depois das eleições, quando o tio Eurípedes perguntou o que podia levar pro Natal da tia Eugênia, o tio Agenor falou “Leva mortadela, não é disso que VOCÊS gostam?!” e o peru subiu no telhado. (Nomes e situações foram ligeiramente alterados para o bem do meu convívio familiar).
Então Bolsonaro assumiu e, diante do seu show de horrores, começou a pacificação. Até fevereiro ainda se lia nos meus grupos um ou outro “Mas e o PT, hein?!”, “E o Lula, hein?!”. Em algum momento, porém, entre o vídeo do “golden shower” e a fala sobre gays, turistas & sexo, até o tio Agenor deu o braço a torcer: “Gente, esse homem é louco ou burro?”.
O burro, percebo agora, se parece com o gênio. Ele é imprevisível, surpreendente, criativo: o burro vê o que ninguém mais vê. Bolsonaro é como um Picasso que realmente enxergasse o mundo retorcido. Ou plano? É como uma criança de dois anos que não pode ficar só, sob risco de botar a Presidência na tomada, engasgar com uma reforma, emporcalhar com guache todas as instituições, botar fogo na casa.
Fosse um burro feliz, feito um Forrest Gump, menos mal. Acontece que, como escreveu aqui na Folha Sérgio Rodrigues, o ethos deste governo é o ressentimento. Do ressentimento brota o ódio ao conhecimento, à arte, à diversidade, a qualquer forma de dissenso. Resultado: no grupo da família, tio Agenor e tio Eurípedes sentem-se tão diferentes da atual gestão que esqueceram as próprias diferenças.
Não é só nos grupos de WhatsApp que sinto os antigos flás e flus se unirem diante da ameaça do tenebroso Olaria que tomou a política nacional. Vejo Renato Janine Ribeiro, por exemplo, buscando pontos de concordância numa entrevista do Luciano Huck. Amigos de esquerda dando share nas colunas do Reinaldo Azevedo. Eu mesmo concordo com tudo o que o Demétrio Magnoli escreve e dou like atrás de like nos tuítes do meu ex-antípoda Carlos Andreazza. Mudou a esquerda? Mudaram estes colunistas? Eu? Talvez um pouco de cada, mas mudou sobretudo o cenário. O buraco, agora é bem mais embaixo.
Quem sabe o tiro da arminha de mão não esteja saindo pela culatra e Bolsonaro consiga o que o PSDB e o PT não conseguiram: juntar no mesmo barco todos os que, mesmo que com diferentes visões de mundo, tenham apreço pela democracia, pelas leis, pelos direitos humanos, enfim, por todo esse mimimi efeminado chamado civilização.
Precisamos de um movimento como o das Diretas Já. Do sociólogo ao metalúrgico. Da feminista negra ao pastor. Do banqueiro ao tio Agenor. (Não podemos deixar de fora o tio Agenor, todos os tios Agenores: acorda, esquerda! Vocês precisam conquistar o eleitor não bolsonarista-raiz do Bolsonaro e não espezinhá-lo com posts lacradores tipo “Bem feito!”, “Eu avisei!”).
Podem me chamar de ingênuo, mas acho que tal união é possível: contrastados com a barbárie do Bolsonaro, começo a enxergar pontos de convergência entre pessoas tão distantes quanto Boulos e Arminio Fraga. Espero que eles também enxerguem —antes que a burrice, o ressentimento e o ódio passem por cima de todos nós.
Antonio Prata é escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”, e colunista do jornal Folha de S. Paulo.