terça-feira, 13 de março de 2007

Artigo: João Batista de Andrade

ESQUERDA E CULTURA
Tradição e Confusão

O interesse cultural é parte inquestionável de qualquer pensamento de transformação do mundo e que tenha minimamente interessado a qualquer sociedade humana.

Pois transformar implica em conhecer, em criticar, uma certa capacidade de analisar e inferir caminhos capazes de convencer as pessoas.

Para a esquerda, o pensamento crítico sempre foi fundamental e nasceu sempre carregado de sonhos, ideais, seja nas áreas de busca científica seja na área artística, as variantes do cotidiano humano, como braços de rio que se deslocam lateralmente para retornar adiante ao grande rio do cotidiano e ali se validar, se socializar, mostrar sua capacidade de entender e transformar o mundo.

Por isso o mundo da política, para a esquerda, anda sempre acasalado com esses dois mundos do conhecimento. E a esquerda sempre se vangloriou de ter de seu lado os maiores talentos, os grandes cientistas, os grandes escritores, cineastas, pintores, arquitetos, gente de teatro, etc.

Pois de alguma forma todos contribuem para uma maior compreensão desse mundo de múltiplas facetas, complexo ao ponto de precisarmos a todo instante isolar um aspecto dele para procurar entender pelo menos esse aspecto e tentar depois ligar o que aprendemos com tudo o que sabemos ou ainda procuramos saber da vida, de todo o complexo real dentro do qual vivemos, sentimos, indagamos e produzimos.

Os partidos políticos de esquerda têm essa tradição, a de serem pólos de atração para o mundo da criatividade humana.

Mas sofrem de uma crônica dificuldade de elaborar sua política cultural.

As razões são muitas.

Uma delas é que a esquerda ganha com as adesões sem ter que trocar nada: são apoios gratuitos, que mais revelam a força e o poder de atração das idéias libertárias. É comum a piada no mundo cultural de que a direita é melhor para a cultura do que a esquerda: no poder, a esquerda já tem o mundo da cultura; a direita não, precisa conquistar pelo menos uma paz...

Outra é que o mundo da cultura, no capitalismo, vestiu também a forma da divisão dramática do trabalho e da exclusão social, criando quadros de elite que se distanciam das massas pela quantidade de informações e oportunidades que a eles se oferecem. Em contrapartida, para viver, - e produzir, esses setores precisam realizar sua vertente profissional, viabilizar seus livros, suas peças, seus filmes, suas teses, suas experiências, pesquisas. E essas necessidades acabam se revestindo de modo corporativo, alimentando nem sempre o que há de melhor nos próprios setores, mas sem outras alternativas dentro do capitalismo.

Assim, dentro do mundo da cultura se esboça uma representação superior do aprofundamento da divisão de classes e suas conseqüências mesmo para aqueles que sonham com um futuro sem essa divisão.

Por outro lado, os partidos de esquerda já cometeram uma quantidade suficiente de erros na área cultural, -o bastante para que se possa desejar algum acerto de vez em quando.

Um dos erros é o dirigismo.

Outro o liberalismo oportunista, muito comum entre nós: avaliações amigáveis para os pensamentos e obras de nossos aliados.

Outro erro é se deixar conduzir pela perigosa idéia de que “nós é que sabemos do futuro, temos o futuro” e querer encaixar o mundo da cultura nesse estreito corredor.

Outro, é claro, é a submissão aos interesses corporativos.

E, mais claro ainda, a recusa à questão por causa do corporativismo ou da visão política equivocada de artistas e intelectuais (A esquerda é que deve compreender melhor o mundo e inclusive os equívocos das idéias de setores importantes da atividade cultural).

Outro erro é confundir Política Cultural para a Sociedade com uma certa “política cultural para o partido”, isto é, o que é melhor, na área da cultura, para o Partido.

Muita gente boa entrou nesse tipo de desvio, às vezes na melhor das intenções. Por exemplo ao valorizar de tal maneira “ a vitória do realismo”, mecanismo que leva escritores reacionários a produzirem obras críticas, - que esses escritores passaram a ser mais valorizados do que os outros..., com graves conseqüências para a esquerda no meio cultural.

Um outro problema é que, dividida e especializada a sociedade, também acabam divididos e especializados os mecanismos de ação: universidades, entidades de financiamento, secretarias, ministérios, museus, etc. E cada uma dessas instâncias com sua vida própria, exigindo respostas concretas e próprias, além da abstração usual e vazia que muitas vezes permeia o discurso de esquerda principalmente depois da derrocada do socialismo real.

É preciso recolocar as coisas no lugar.

O mundo da cultura tem necessidades locais e é fundamental para o desenvolvimento das sociedades e das idéias, para a formação de novos valores, novas propostas, para a geração do novo na sociedade.

A esquerda organizada deve atuar ali como um fator de consciência política e de capacidade de organização. É preciso que os problemas gerais sejam enfrentados, é preciso dialogar com as tendências corporativas, superar manipulações, democratizar o mundo da cultura em todos os seus aspectos através da ação partidária. O Partido não age para si ou: só age para si em decorrência de agir por e para a sociedade, buscando um mundo melhor, mais justo, menos temeroso do futuro do que hoje.

É claro que em muitos momentos propostas novas foram geradas, - ou simplesmente desenvolvidas, dentro dos quadros partidários. Mas a verdade é que essas propostas só são validadas quando escapam do controle da esquerda, caem na sociedade como bens à disposição de todos.

E assim é que deve ser.

A esquerda organizada deve pois buscar uma certa capacidade de se colocar na vanguarda desses movimentos, -muitas vezes cobertos pela incômoda face corporativista, - deve exibir sua face universalista, progressista, capaz de absorver, entender e até desenvolver idéias progressistas nascidas de qualquer canto, deve procurar entender as mensagens das criações artísticas para além do factual, valorizar todas as criações do espírito humano pois elas são fundamentais para o que queremos: um mundo melhor.

A esquerda organizada deve ser a guerreira na ação política de todas essas necessidades e desejos, colocando-se acima das corporações, acima dos equívocos do setor ( costumam ser muitos e terríveis...) mas ao lado das questões candentes e necessárias da área cultural, inclusive de sua democratização radical.

O objetivo é o povo, a sociedade humana, - a superação das injustiças, a construção de uma sociedade mais livre, de iguais oportunidades para todos, sem violência, sem guerras, sem exclusões sociais, sem misérias, sem fome, sem ignorância, sem intolerâncias e livres da visão de pavor medieval ante cada avanço das ciências e das artes.

No Brasil de hoje, sabemos da carga cultural de nossas necessidades de superação de problemas históricos incrementados pelos desafios e erros do presente.

Para começar, a discussão sobre a concretude das idéias, a necessidade de aferição permanente entre o que se fala e o que se faz, entre o que é e o que é dito, entre o que se propõe e o que, por trás da proposta, se deseja.

Um partido de esquerda não pode se diluir nessa confusão oportunista e nem se afogar na quantidade de gotas más lançadas a todo instante por forças carregadas de incoerência como vemos agora, mesmo advindas da esquerda.

É preciso se afirmar, como tem exigido hoje a sociedade e a imensa maioria de seus espíritos criadores, a coerência e o respeito não só aos direitos mas também às aspirações maiores da sociedade.

É preciso voltar a ter o futuro como meta e o presente como momento de ação.

(Nota do autor: texto feito a pedido, escrito de improviso e propositadamente inacabado)